Renascimento*

Aquele dia, cinco de maio de 1985, fazia cinco anos que ele entrara naquele local. O tempo se incumbira de transformar a vida daquele homem pacato e feliz em um verdadeiro lixo humano. Ele não sentia prazer em sequer tomar banho. Vivia sujo, barbudo, cabelos longos. A cela onde estava parecia mais um lugar para animal, cheirava mal.

A manhã do dia cinco de maio de 1975 não lhe saía da cabeça e Pedro parecia não querer esquecê-la.

Enquanto os colegas matavam o tempo jogando damas, dominó, baralho, seu único passatempo era o cigarro, amigo inseparável, que fumava um após outro nas longas noites em que remoía o passado.

Quase esquecia-me de que havia também umas cartas que, vez por outra, lia com muita atenção.

O amanhecer do dia dez de maio de 1985, porém, seria muito especial para Pedro. Ele teria finalmente sua liberdade.

— Vamos, Pedro, anime-se tome um bom banho, daqui a algumas horas você estará voltando para sua casa - disse-lhe o carcereiro.

A hora então chegou. Os colegas das celas próximas a dele despediram-se, desejando-lhe que fosse feliz. Todos gostavam realmente de Pedro e torciam por ele.

Pedro, porém, não quis ir direto para casa. Antes deveria passar pelo cemitério. Lá visitaria o túmulo de Adelina, sua esposa. Passou por uma floricultura e comprou um buquet de flores.

Chegando ao cemitério, ele não se conteve, chorou copiosamente. Ali todas as cenas que antecederam sua prisão começaram a passar na mente daquele jovem, tal qual uma película de cinema.

Pedro tinha um primo chamado Jaime. Foram criados juntos na cidade de São Luís do Maranhão. Este veio a Belém à procura de Pedro. Chegou com cara de anjo e as trouxas nas costas.

— Primo, estou sem emprego, passando necessidade, dá pra você me arrumar um lugarzinho aí em sua casa.

Pedro não pensou duas vezes, aquele era o primo de quem ele mais gostava. Logo Jaime estava alojado na casa, composta de somente uma sala, um quarto e uma cozinha, onde, além de Pedro, morava também Adelina, sua esposa. Estavam casados há cinco anos e não tiveram nenhum filho.

Pedro era padeiro, trabalhava em uma das firmas de Belém do Pará. O horário de trabalho exigia dele que saísse às quatro horas da manhã, religiosamente, para, às cinco horas, "pegar no batente".

Adelina ficava em casa com Jaime, que depois de três meses ainda não havia conseguido emprego. Esses primeiros meses, porém, passaram-se sem nenhuma anomalia.

As constantes saídas de Pedro, contudo, começaram a despertar um sentimento forte em Jaime com relação a Adelina. Esta era jovem, bonita, morena, lábios carnudos, pernas bem torneadas.

Começou, então, a insinuar-se para a esposa do primo, sem que essa lhe desse qualquer confiança.

Certa manhã, após a saída de Pedro, Jaime ficou contemplando Adelina, que dormia profundamente. Jaime não resistiu. Aproximou-se dela e começou a acariciar-lhe as pernas. Adelina acordou sobressaltada.

O que significa isso, Jaime. Nunca lhe dei motivos para que tomasse esta atitude.

Adelina disse que se isso voltasse a acontecer contaria tudo ao marido.

- Não, Adelina, não faça isso. Só fiz isso porque não consegui me controlar. Você é muito bonita e o sangue me subiu à cabeça.

As tentativas de Jaime não pararam por aí. Foram várias as vezes que tentou aproximar-se de Adelina, todas, contudo, sem sucesso.

A moça pensou em contar tudo ao marido, mas temia pela reação deste e pelo desapontamento em relação ao primo. Ela sempre fora fiel ao esposo; amava-o de verdade. Era uma esposa amantíssima. Procurava satisfazer-lhe todos os desejos.

As recusas de Adelina só faziam fazer crescer no coração de Jaime o desejo de possuí-la. Aos poucos, porém, esse sentimento de possessão transformou-se em ódio, pois este não conseguia suportar a rejeição.

Foi tanto o ódio que começou a fazer comentários que comprometiam a imagem de esposa fiel de Adelina diante dos vizinhos.

Certa feita Jaime resolveu ir embora. Ao contar sua decisão ao primo, este disse não entender o porquê daquela atitude repentina e começou a pedir-lhe que ficasse, acabaria arrumando o emprego desejado.

De tanto Pedro insistir, Jaime disse-lhe que não poderia continuar de forma alguma morando ali, para não trair a confiança do primo. Contou-lhe que Adelina, nos últimos meses, vinha perseguindo-o, tentando de todas as formas convencê-lo a ter um caso com ela, coisa que achava inadimissível, pela amizade que tinha a ele. Por isso resolvera partir.

Pedro, ao ouvir tal relato ficou transtornado. Pensou consigo mesmo: — Por isso o comportamento arredio de Adelina em relação a mim. Achava que algo estava realmente estranho com ela, mas sequer desconfiava o que fosse.

Impulsivo como era, Pedro começou a beber, coisa que não costumava fazer. Era para criar coragem e enfrentar Adelina face a face.

Chegando a casa, foi logo brigando com a esposa e, ao ouvir dela que a versão do primo era totalmente contrária ao que de fato vinha acontecendo, disse-lhe que o primo não tomaria a atitude de sair de casa e ainda contar-lhe tudo caso isso não fosse verdade.

Brigaram feio pela primeira vez. Os vizinhos todos ficaram sabendo o que se passara ali.

Pela madrugada, Adelina, não supor-tando a vergonha e a desconfiança do esposo, pegou uma porção considerável de um veneno conhecido por chumbinho e o tomou. Pela manhã, foi encontrada morta.

Durante o velório, Pedro não sabia ao certo que sentimento passava-lhe pela alma. À tarde Adelina foi sepultada.

Jaime, ao saber do ocorrido, cheio de remorso, procura Pedro para contar-lhe a verdadeira versão do acontecido. Este fica transtornado e, num gesto novamente impulsivo, corre para dentro de casa, retira um revólver e dispara todas as balas em Jaime.

De repente, Pedro é despertado daquele pesadelo por um som suave que começa a invadir aquele lugar. Era uma música vinda de uma igreja, situada em frente ao cemitério. Um dos trechos da música dizia: - Vinde a mim todos vós que estais cansados; tomai sobre vós o meu jugo, porque sou manso e humilde de coração.

Pedro foi envolvido totalmente por aquelas palavras e vieram-lhe à mente as cartas que recebia na prisão. Eram palavras encorajadoras mandadas por uma jovem evangélica e que naquele momento ardiam como fogo no seu coração.

Pedro dirigiu-se à igreja de onde vinha a música, assistiu à reunião e sentiu alguma coisa mudar no seu interior.

Ao sair dali, foi para casa. De uma coisa tinha certeza: não era e nem seria mais o mesmo Pedro.

* Publicado no livro INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.