Enxame

ENXAME

Verteu um gole seco e sorriu. Seco e direto como todo princípio e decisão devem ser. Seco. Garganta seca, estranhou o amargo do drinque escuro. Sorriu contraindo os músculos ainda brilhantes da face. A face. Um enxame de abelhas começava a ferver no copo, nos restos do cálice estourado na parede.

Levantou-se, confiante, trancou a porta. Sentou-se e com a calma dos justos, tomou papel e caneta. Queria escrever. Mas por quê? Para registrar seus motivos, talvez. Para se sentir menos só, menos fria – onde está a corrente de ar que me gela a boca? As abelhas fervilharam, lentamente, em seu estômago.

Tinha que ser breve. A bebida faria efeito rapidamente – conforme planejado. Planos. Que planos? Memórias. Não encontrou o cisne ferido de Neruda. Nunca foi poeta. O que foi se não morou em bosques chilenos? Bastavam os brasileiros, que se alojaram em seu coração e devoravam lentamente suas entranhas.

Longos anos em meio a sapos, rãs, fungos, insetos, toda sorte de bichos que saltavam pela boca – e pelos ouvidos entravam – em largas noites de insônia, de angústia, de dor. Sempre pensou em engolir e digerir os bichos, mas eles entravam tantos e de tal forma em seus ouvidos que não restavam forças em seus pulmões para tossi-los, espirrá-los, vomitar os habitantes dos bosques ventrais. Riu-se. Agora iria matar a todos, não abriria a boca para que fugissem, nenhum daria o alerta do incêndio que labaredava crepitante.

As abelhas trepidavam, zumbiam em zigue-e-zague, zangando-se pela garganta e narinas, trançando a nuca e os cabelos.

Tentou levantar-se, mas o corpo pesou. Teve medo, nunca havia bebido. Sentiu enjôo, quis fugir para o banheiro, ajoelhou-se antes, lançando pelos lábios entorpecidos alguns insetos que ouvira. O líquido azul era claro, bonito, lembrava o mar. Súbito, não viu mais o mar. As abelhas tomavam-lhe os globos, as pupilas, as córneas, as retinas. As retinas, as córneas, as pupilas, os olhos.

Era já quase só – abelhas. Abelhas somente. Negras, vorazes, velozes, zumbindo e rasgando a face, a juventude, as mentes – não, não conseguia escrever, nem se levantar, nem ver os cisnes, nem engolir o mar.

Veio o calor. E a sede. Nada de água, nada de forças, deitou-se exausta, sentindo as abelhas veias adentro, dedos afora, cavidades em cheia. E o mundo fechou-se em si mesma.

Pela primeira vez, só. Consigo mesma, nada via ou ouvia além de seus pensamentos. E das abelhas. Os seixos escorregaram do rio salgado, molhando os lábios febris e a língua em chamas. Geladas chamas.

A primeira picada. Rápida e profunda. O ferrão dilacerou a carne, seguido de outros milhares, causando rebuliço no bosque em chamas. Morram, bichos! Teimam em fugir, desesperados, galopam nos bosques, pulam em troncos, despedaçam-se nos alvos dentes manchados com pústulas de sangue. Estouravam, mas não feneciam. Multiplicavam-se. Saltavam. Feriam.

O bosque em chamas. O caos. O pedido por ajuda estalou nos músculos retorcidos da face. Era tarde para pedir socorro. Era cedo para abrir as janelas.

Quis ar. Quis água. Quis cigarro. Quis amor. Quis amigos. Quis salvação. A vida de querências esvaía-se nos cacos do gole seco do veneno. Até o silêncio fazer-se enorme e trancar as portas.

Tudo consumido. As abelhas dispersaram-se, serenas. A calma. Sem cicios, sem sussurros. Acabou-se o bosque. Sorriu-se a alma. Paz.

Às cinco horas, conseguiram destrancar a porta, mas as janelas já haviam sido abertas. A massa de carne pardacenta nada lembrava sua antiga moradora. O Inverno foi trazido antes do tempo, com a seca. Benzeram-se enquanto vestiam a mortalha.

O bolor não queimou. Nem os sapos, nem os fungos. Salvaram-se e, no Silêncio, saltaram aleijados e feridos, a esmo, para outros bosques. Talvez não tão belos. Não tão quentes. Não tão calados.

Amanhã haverá novo enxame. As abelhas visitarão outros bosques.

Que sejam bem-vindas.