Vermelho

Logo de cara ele não notou, precisou de mais tempo para perceber, na primeira olhadela parecia apenas uma sujeira estranha, mas depois que ele passou o dedo e não saiu se preocupou mais. Então mandou para a lavanderia, a lavadeira não soube explicar o que era aquilo, não tinha idéia de como algo tão estranho poderia acontecer no paletó dele, ela perguntou se ele fez algo diferente, nos últimos dias, mas ele respondera que não, nada de estranho ou diferente que pudesse deixar aquela mancha em sua roupa. Deixou o paletó ali para lavagem e partiu para o trabalho, se sentiu bem ao perceber que nada tinha mudado, tudo tinha a mesma cor, o mundo era preenchido pelas mesmas cores que ele era acostumado, as duas únicas cores que faziam sentido.

Voltou na lavanderia pra buscar o paletó que havia ali deixado, a lavadeira pediu desculpas, a mancha não saíra, no meio do paletó favorito a mancha crescera, agora não era apenas uma pequenina e impercebível mancha. Aquela cor esquisita o intrigou, era uma cor quente e acolhedora, e ao mesmo tempo representava força e revolta. Nunca vira nada igual, aquilo o levou a loucura, passou a noite pensando na tal mancha em seu paletó favorito, e quando acordou correu pegá-lo no armário, lavou de todas as formas que conhecia, esfregou, molhou, esfregou, molhou, mas nada da mancha sair. Ele não entendia como era possível, em um mundo preto e branco uma mancha daquela cor quente e perigosa.

Com o tempo se conformou que nunca mais poderia usar o paletó que tanto amava, era impossível, as pessoas ririam dele, aquilo, daquela cor estranha. Volta e meia ele olhava de novo para o paletó, lavava mais umas vezes, mas a mancha, ao invés de sair cresceu, cresceu e cresceu, até tomar o paletó inteiro.

Numa manhã, ele foi pegar um paletó pra vestir, já estava acostumado com a cor ardente que tinha o seu paletó favorito, bem escondido, amocado atrás dos outros pretos, e o quão não se surpreendeu ao encontrar uma mancha daquela mesma cor em outro de seus paletós, e em outro, outro e outro. Com o tempo todos os seus paletós estavam da mesma cor, por inteiro, além de calças e camisas, não vencia mais em comprar roupas novas, todas acabavam com a mesma cor, e tal como uma doença, uma praga que se espalha, ele começou a ver a mesma cor em tudo, nos lençóis, toalhas e móveis, o tapete, a cama, o entregador de correspondências, tudo, tudo tinha a mesma cor, e um mundo em que tudo era preto e branco começou a virar ardente e perigoso.

Ele chorou, riu, perdeu a calma, quando os prédios e avenidas todos tinham a mesma cor, a mesma cor do paletó, e ele era rodeado pelo quente e perigoso, pelo incerto. A única coisa que o acalmava era se olhar no espelho, ele era preto e branco, como tinha de ser. Mas não durou muito, um dia ele se cortou com um caco de vidro em sua cozinha, e quase enlouqueceu ao ver a cor do liquido que escorria de seu corte, pegou uma faca, tinha que ter certeza se ele por dentro era mesmo daquela cor, se feriu sem medo, e caiu de joelhos envolvido pelo aroma do liquido quente que escorria das várias feridas do peito e do abdômen, chorou, como criança, lágrimas quentes e perigosas.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 02/06/2011
Reeditado em 01/07/2011
Código do texto: T3010172
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