Janelas Proibidas

“Ó tu que me olhas lindamente

através da janela,

virgem no rosto,

embaixo esposa”

Praxila de Sicião (451 a. C.?)

1 Ana, tomando banho dentro de amplo boxe, aparenta pouco mais de trinta e cinco anos. Ao principio seu comportamento mostra-se natural; aos poucos, porém, a mão que ensaboa o corpo mecanicamente, vai sofrendo mudanças: seus movimentos se tornam mais lentos até explicitar, para sua surpresa, carícias excitantes; ela enrubesce, aperta os olhos, afasta a mão como se não fosse sua, dissimula esfregando com fúria o rosto; em segundos, lá está aquela mão inconveniente provocando-a novamente. Rápidos flashes relembram frustradas relações sexuais com o marido; à noite, o cansaço que o derruba no sonho profundo em meio da relação; quando conseguida até o fim, o resultado insatisfatório a relegando ao desamparo; ao sol, as justificativas para evitar conversas em torno do assunto.

Agora enxuga com raiva seus olhos vermelhos de fúria e autopiedade; sai nua do banheiro; no quarto bate ruidosamente as gavetas à procura de roupas que não encontra. Ana tentando esquecer as palpitações de seu corpo independente e preterido não pode perceber estar sendo observada da janela vizinha à sua, situada a não mais de dez metros de distância no mesmo nível horizontal da sua: é um jovem apoiado no peitoril, mostrando seu torso nu, sólido de juventude; branco sorriso indiscreto e um brilho no mirar que não esconde sua excitação; imóvel e silencioso, olha para ela. Que não pode vê-lo, ocupada demais em tentar esquecer a raiva; escolhida a roupa com apatia e ainda nua, evita o espelho virando-se em direção à janela aberta: a surpresa a paralisa por segundos ao descobrir o curioso, instantes aproveitados para mostrar sorriso maroto de menino pego em flagrante, e sem esconder a perturbação que a visão de sua nudez lhe provoca. Reagindo impulsivamente, ela corre até a janela e a fecha prontamente, enrubescida de timidez e indignação com a impertinência. Depois de o fazer, não consegue evitar um sorriso furtivo que a assusta.

2 Preparando caprichado jantar, Ana se espanta com a audácia de sua imaginação, mostrando-a participando em cenas de ardente sexualidade, tendo de parceiro o sedutor voyeur, seu novo vizinho.

3 Ana, coquete, se embeleza com maquiagens e realça propositadamente as formas de seu corpo com lingeries esquecidos de pouco usar. Excitada, afasta imagens que teimam surgir em sua mente com a velocidade de um piscar de olho e com a força erótica de uma compulsão.

Impaciente espera a chegada do marido.

Distrai-se com os últimos retoques de requintado jantar.

Evita cuidadosamente chegar perto do quarto e sua janela, ainda que escondendo miradas fugazes para ela.

Cantarola, acompanhando a música do rádio.

Baila, bebe, espera, para não pensar.

Finalmente se aquieta, cansada do marido demorar demais.

Pula quando o telefone toca: o marido vai se atrasar; negócios inadiáveis; desculpas; noite perdida.

Cinco segundos depois, enrubesce à mercê de sua excitação.

Parecendo uma ladra, vai até o quarto.

Como uma bisbilhoteira, abre a fresta da janela e espia: lá está a do vizinho, escancarada, parecendo um convite: mas o quarto iluminado mostra seu vazio. Vai desistir e se recolher, quando a chegada do jovem vizinho a imobiliza: molhado e nu, esfregando as costas com uma toalha, se comporta com a naturalidade de quem se sabe só. Como ela de horas antes, também cantarola - ela adivinha ou gostaria - a mesma música que está escutando em seu próprio rádio.

Se agita, no entanto, e fascinada com a visão proibida, não consegue afastar-se. Observa os movimentos dele por minutos largos; subitamente, como a pressentindo, ele se vira na sua direção: sorri malandro, parece saber de sua presença. Impossível, a escuridão é total no seu quarto, mesmo com essa certeza ela corre fugindo da visão e especialmente do que sente.

4 O dia seguinte de noite mal dormida traz para Ana a rotina de sempre, começando com a despedida nervosa do marido indo para o serviço, atrasado, sempre, o tempo todo, em tudo.

Sozinha de novo, mas de outra maneira; agora tem o estímulo de exercer um jogo desconhecido para ela, o da sedução: fingindo indiferença, abre a janela do quarto de par em par evitando olhar para a do vizinho; minutos depois de fingir concentração nas tarefas de arrumação, se atreve a olhar e com desconforto a descobre fechada.

Como a janela dele, também Ana fecha a cara.

Será dia tedioso, com intervalos tensos só quando vai até o quarto e constatar que a vizinha janela permanece fechada e silenciosa.

5 Ana está banhando-se, inquieta. De súbito, acredita ter ouvido ruídos; um chamado? Sem hesitar sai do banheiro; centelha molhada em direção ao quarto; ofegante e cuidando para não ser vista, olha: é ele! Guardião vigiando sua janela. Só nesse instante percebe que, molhando o chão, está com sabão no corpo e que está feliz! Ri de sua criancice e corre de volta ao banho.

6 Vestida com minúsculo e apertado short, blusa de profundo decote, Ana refaz a cama pela terceira vez; tem certeza que ele está lá, olhando-a, esperando se virar na sua direção. Nervosamente ela o evita; mas consciente do jogo sedutor se exibe ostensivamente ao desejo que sabe estar estimulando; até que aparentando casualidade o encara: torso como sempre nu, sorriso largo, braços fortes e mãos! Uma delas faz sinais que ela não entende imediatamente. Estática não atina a nada, apenas olhar, assustada com ela e com a nova situação; já não é mais fantasia, a nova realidade exige uma atitude, chocante em sua simplicidade: ele lhe pede o número do telefone! Pouco a pouco enquanto espera a resposta, como gato mimado ele se afasta da janela lentamente; anda de costas sem tirar os olhos dela, expondo devagar o corpo antes oculto pelo peitoril, até mostrar-se por inteiro e Ana o constatar nu, oferecendo-lhe sua excitação; o convite no mirar e nos gestos não deixa dúvidas: ele lhe pede para fazer o mesmo. Maquinal, obedece tirando toda a roupa, e também ela afasta-se da janela para também ser vista por inteiro.

Aquele momento é longo, ambos se desfrutando com num feitiço. Distância pequena os separa, contudo, larga demais.

7 Todos os dias, semelhante a ritual, festejam a excitação de seus corpos expostos, acariciados sem palavras e muitos sorrisos; quando a tensão cresce e ele insiste pedindo o número de seu telefone, depois de breve hesitação, ela corre a esconder-se com medo do poder de concretizar desejos ameaçadores de remotas convicções.

8 Todos os dias, o jovem amante platônico insiste, pedindo com sinais para lhe passar o número, símbolo de sua aprovação. É quando ela foge, para voltar no dia seguinte depois de ter-se prometido, mais uma vez, terminar com aquilo, renunciar à provocação.

Desafio refletido em todos os espelhos da casa:

Na sala; nos cristais, o silêncio:

Eu tenho uma espécie de vulcão dentro de mim.

Eu posso entrar em erupção a qualquer instante, é bom você tomar cuidado.

No banheiro e nua, os seios entre as mãos; dialogando com o silêncio:

Se eu deixar de manter você engarrafada e entrasse em erupção total, o que aconteceria?

9 Marido de malas prontas, com a mesma pressa de sempre se despede; três dias longe; negócios inadiáveis. Parte, e sem o saber, deixa Ana com missão secreta e proibida.

Um verdadeiro cartaz, fragmento de alguma caixa de papelão; com o lápis de sobrancelhas Ana escreve em bom tamanho o número de seu telefone. Depois dança de rosto colado com ele; aninha-o entre seus seios; esfrega-o entre as pernas; murmura canções de ingênua pornografia para ele; enquanto aguarda a coragem.

10 A hora do rito chegando, o momento da provocação se aproxima. Ana anda pela casa arrastando o pedaço de cartolina e os grandes números parecem pular e dançar com ela; sete números: um para cada dia desde que tudo começou. Eu sei como usar a cartolina... É útil. Eu posso também ser útil. Eu não estou jogada e abandonada, eu posso facilitar as coisas. Eu quero ser útil para o bem de alguém. Ou para o meu bem. Brinca com os números, deita-os no colo, enquanto as imagens eróticas de sua imaginação vão sendo substituídas por as de um passado remoto, mas agora voltando com a arrogância de saberem ter calado fundo: é religião atormentando sonhos sensuais, decompostos em pecados hediondos; é casamento abalizado por resolução e fuga; é mãe admoestando-a por pecadilhos, transfigurados em passaporte para o inferno; é o tempo perdido marcando seu corpo como tatuagem. Ana cercada daqueles fantasmas, vai até a janela. Sem abri-la, tira toda a roupa e nua acaricia os números do telefone, um a um estampados no cartaz.

A janela do vizinho espera a pouco mais de dez metros. Ana sem lágrimas vai rasgando lentamente o cartaz, número a número no quarto vazio. Eu preciso ser cuidada, como todas as coisas, eu preciso que tomem conta de mim? Derramando-se no chão, se aconchega nos restos de números que se colam no corpo suado e febril.

Você vai enlouquecer? Pelo amor de Deus, pare de ser tão dramática. Não tem mais idade para alguém vir e levar você embora. Se é que você quer ir embora.

11 À maneira de epílogo:

Marido voltando de negócios inadiáveis dias depois‚ com a pressa cansada de sempre, não encontra Ana em nenhum aposento. Nem bilhete e nenhuma pista. Horas depois de imaginá-la voltando com diversas justificativas e percebendo que a demora está fora da lógica de seus devaneios, atreve-se a imaginar o impensado. É nas gavetas do guarda-roupa que inicia a pesquisa; nada em particular que lhe chame a atenção. Na ansiedade crescente, não percebe a janela entreaberta, e sai do quarto sem ter visto Ana, da janela vizinha à sua, situada a não mais de dez metros de distância, expondo por inteiro um amplo sorriso e seu corpo nu.