CACHORRO DANADO

Época do verão. A molecada gostava. Havia chuvas para nossas brincadeiras, sol para aquecer as águas do córrego, banhos quase o dia todo no poço do Escorrega oferecendo-nos, agora percebo, um excelente tobogã natural. Pescaria de mão atrás dos cascudos e bagres sabidamente de hábito noturno e se escondiam nas locas durante o dia. Farra pura para um monte de pelados. Ah! E tempos das férias também! Maneiro.

Mangas às pamparras, milho verde para assar no braseiro do fogão; dias mais longos e as brincadeiras, quais fossem, poderiam ser praticadas até mais tarde iluminados pelo sol sem se importar, pela idade e ignorância, com câncer de pele ou outras joças da vida moderna que os tarados por dinheiro nos lançam aos borbotões através da TV e tantos outros ardis do consumismo.

Mas não gozávamos somente das belas e boas coisas da época. Havia mais um medo com dia definido: cachorro danado. Cachorro não poderia adoecer. Estar doente era condenação sem piedade para o sacrifício do animal, pois a raiva era bastante comum, o bicho ficava doidão e saía andando sem destino mordendo todo mundo.

Cabia ao dono avisar aos vizinhos do acontecido e, num julgamento sem direito a defesa, sua condenação de morte. E não se estabelecia qual a maneira do réu condenado à revelia deveria morrer. Tanto fizesse por tiro, cacetada, foice e mais o que houvesse. Ah! E sem direito a defesa ou apelação.

E então, meu velho, a gente ficava presa dentro da casa tantos dias até que se soubesse com toda certeza estar o assassino em potencial fora de combate. Era bastante frequente o animal com otite ter o seu comportamento alterado, mas quem tinha a coragem de se achegar ao cachorro doente, cabeça pendida para um lado, sem apetite e com way of life diferente? Tava danado! Condenado!

Se então o bicho ficasse babando, não comendo, não bebendo água e procurando lugares mais sombrios a coisa estaria mais preta ainda, pois não se sabia nada sobre a hidrofobia do animal. Parece-me, sem muita certeza, que o vírus da raiva provoca uma paralisia ou coisa semelhante aos músculos auxiliares da deglutição e, na realidade, ele não bebia ou comia porque não podia engolir e a baba era consequência também da impossibilidade de deglutir a saliva. Mas lá diziam que se ele bebesse ou entrasse na água, morreria de estalo. Quanta crendice! (e tome cultura inútil).

Não sei não, mas a raiva naquela época era muito mais temida do que a AIDS hoje. Só, na minha avaliação, há uma diferença brutal na maneira de se contaminar, pois na raiva você ainda tinha de levar uma dentada dolorida de um cão e na outra a coisa, ou seja, como se contaminar não é nada doloroso, pelo contrário. Atenta, não?

Eu nunca vi uma pessoa por lá morrer de raiva mas vovô e outros contavam um caso de uma mulher falecer por causa dela. Exageravam tanto, fazia a coisa parecer tão mais dantesca, havendo até a necessidade de prender o doente num quarto escuro e tomar ainda maior cuidado pois tentava fugir subindo pelas paredes.

Uma coisa, apesar da minha pouca idade, era duvidar um pouco destas aventuras. Eu sempre achei que cachorro danado era para ser temido, mas a visão que eles nos davam da doença tinha muito de fantasia para nos amedrontar ainda mais. Não bastassem saci, mula-sem-cabeça...

Até onde sei, cachorro danado ou “pseudodanado” não morria devido a doença. Eram sempre massacrados por pessoas que, além do medo desenfreado do animal doente e suas consequências, também gostavam bastante de atirar ou esbordoar os bichos. Se um cachorro tivesse um piti agudo, era prudente avisar-lhe de que isto para humanos significava pena de morte. Bicho não tinha direito nenhum de ter fricotes. Frescuras... Jamais!

Alguém pode julgar ou até mesmo garantir ser as pessoas da minha época assassinos indignos de conviver neste nosso mundinho? Até posso concordar sob certos aspectos. Mas na época atual matar bicho não tem mais graça nenhuma, démodé; o quente é matar humanos. Dar tiros e tirar a vida dos semelhantes é trivial, já não há nem mais graça ficar matando cachorro a pauladas ou arremessar pedras em passarinhos se é mais fácil tirar a vida de um semelhante e não ser castigado ou quase nada por isso.

Vou repetir uma historieta manjada: se você é um caçador e for pego pela Polícia Florestal, mate o guarda. Assim será muito mais fácil você se livrar da cadeia do que pelo tatu que você pegou para aliviar a fome dos guris. Não parece monstruoso? Pensa que é brincadeira?

Pergunte a um amigo ou amiga entendida das leis. Atualmente no nosso código, se não me falha a memória ou se já mudou e estou desatualizado (não sou advogado), matar um bicho qualquer é inafiançável; matar gente pode até esperar o julgamento em liberdade. Hoje até parece ser esporte.

Quando era menino fazia marcas no gancho da minha setra sempre que matava um passarinho (não gosto de falar nisso; repito). E agora, fazem-se as marcas no cabo do revólver e na coronha do fuzil? É campeonato? Disputam-se medalhas? Como eu estou por fora, gente!

Plagio o macaco:

“Eu só queria entender!”. Mundinho disgramado, vixe!

Terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Dbadini
Enviado por Dbadini em 03/06/2011
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