CHUVAS

Enfim, as chuvas voltaram! Não há nada melhor para o meu humor. Tira de letra qualquer mandinga para depressão, ansiedade e até desengripam as juntas. Claro que na minha idade a gente já vai acumulando alguns desses reveses que aporrinham a saúde desse imenso e ainda incompreendido corpo humano. Queiramos ou não.

Nós estávamos no micro: eu e a Alice. Ela pinta e borda com o teclado e o mouse e eu nem estou aí pra isto. Onde pode mexer, elazinha vai com tudo. De repente começou a chover e foi apertando, chegando a um nível que chamou a sua atenção. Tem um ano agora e jamais teve ainda condição de ver uma chuva como aquela: forte, bonita, melodiosa. Parou com a brincadeira aqui e ficou muito atenta aos pingos inicialmente e depois uma verdadeira biquinha que vertia lá pelo beiral do telhado.

Achei que ela gostasse de estar mais perto. Levantamos - lógico, ela enganchada em mim - e chegamos à varanda. Não teve reação aparentemente nenhuma. Diacho! Eu gostava tanto quando chovia na roça! Não daquelas tempestades de raios e trovões dos quais tínhamos um pavor apavorado. Pensa que somente nós crianças? Mamãe pelava de medo! Arrancava de casa com a filharada toda a qualquer hora da noite se ameaçasse uma daquelas retumbantes tempestades. E nós crescemos num mundo de medo e ameaças. Acho, não estou certo, que era um dos trunfos que mamãe possuía para ajudá-la a controlar seis, tendo eu como capitão-mor do farrancho por ser o mais velho e o mais carne de pescoço.

Não pode comer isso, não pode misturar isso com aquilo, não vai lá porque tem arame ou prego enferrujado, espinho e pode “dar o mal”, ou cobra, ou mula-sem-cabeça, ou saci e por aí afora. Mas o melhor argumento na base do medo era o das almas! A gente se borrava completamente quando ouvia a palavra alma ou seus assistentes imediatos: fantasmas, defuntos, por exemplo. Aliás, não fazia muita diferença, na escala do medo, qual era o mais temido. Ó! Vou contar uma coisa: nem de cachorro danado ou vaca parida nós tínhamos tanto medo assim. A gente tinha noção de que estes últimos aí não poderiam entrar dentro de casa se ela estivesse com as portas fechadas, mas a praga da assombração passava até através das paredes e puxava as pernas da gente se estivessem descobertas. E só aparecia à noite!

Não tínhamos luz elétrica, mas meu pai bolou ou pirateou uma lamparina mais ou menos assim: colocava água num copo até o meio e dali quase a borda com azeite de mamona. Pegava um pedaço de taboa de alguma esteira, furava e colocava um pavio de barbante. Aquilo boiava e ele mandava fogo no pavio. Tínhamos uma luzinha avermelhada e sem fumaça durante toda a noite. Tenho certeza de que nenhuma assombração ou o que fosse nunca pegou a gente por causa daquela luzinha. Bonitinha, ela! Maneira! Só vendo!

Bem. Fiquei um pouco sem graça com a atitude da Alice. Mas ela não vive mais naquele mundo e não tem medo de nada, o trenzinho! Pode estar claro, escuro, tiro de foguetes, tempestades... O diabo! (este era outro cara do qual nós tínhamos verdadeiro pavor). Resolvi ir para a varanda que já foi garagem e agora está com o status de varanda/garagem/churrasqueira/alimentador de sabiás/só-Deus-sabe-o-futuro...

Cheguei bem pertinho do local onde a goteira era mais intensa. Pois ela se recolheu! Retraiu os bracinhos junto ao peito e senti que estava ansiosa. Coloquei então o meu dedo lá. Ela nada! Coloquei a palma da mão; a água fria espirrou e ela sorriu. Senti que estávamos evoluindo. Com tempo, por si, colocou a mãozinha e ficou, ficou, ficou... Não queria mais sair. E eu já afrouxando, pronto pra jogar a toalha e pedir penico de tanto cansaço. Isa, a avó, mais uma vez me socorreu. Também - coitada! - Já está toda torta de tanto sufoco que a minha boneca apronta pra coluna dela.

Mais uma vez eu me reportei à roça. Quando calhava aquela chuvinha manhosa e preguiçosamente despencando das telhas, papai pegava um canecão dos grandes e aparava aquela goteira e assim ia enchendo a talha alojada num canto da cozinha. Água gelada! Só mesmo assim nós podíamos ter a noção de água gelada e fazer algum sentido de como seria uma tirada da geladeira. Mais tarde meu avô comprou uma que funcionava com uma lamparina a querosene. Estranho, não é? Tacava fogo na geladeira para que ela gelasse. Mundo doido! Fiquei com uma tremenda vontade de repetir aquele gesto, pegar a água da goteira, beber, sentir novamente aquele prazer de menino capiau, mas era a primeira chuva forte e naturalmente ainda insuficiente para lavar as telhas. Na próxima, se não demorar muito... Ah! Vou não! Não sei se vou gostar! Cortar meu barato, minhas doces ilusões do passado do qual não sou tão fã assim!

Já meu avô utilizava da água da chuva para usar na bateria do fordeco. Então: o fordeco, como os carros de hoje, usa uma bateria. As daquela época gastavam muita água (não sei por que) e tinha-se de repor vez por outra. Mas não se podia usar água da torneira ou da bica; tinha de ser água destilada, me dizia o mestre. Eu na ocasião não fazia nenhuma ideia da diferença entre essas duas coisas, mas meu avô me garantia ser a água da chuva destilada e eu acreditava. Só que tinha de ser apanhada sem que antes ela tivesse contato com as telhas, árvores ou qualquer outra coisa. Tinha de ser colhida em pleno terreiro em uma bacia de louça. Se ele sabia também por quê? He!He!

Minha avó tinha uma muito bonita que fazia conjunto com um jarro já com um pedaço quebrado na borda e servia para que pessoas ilustres lavassem as mãos e depois as enxugassem numa toalha de linho bordada. Então, olha só que engenharia o vovô arrumou: fincou quatro estacas de bambus de um metro de altura lá no meio do terreiro. Nada por cima: só a chuva. Amarrou as quatro pontas de um lençol branquinho ali, mas de tal maneira que não ficasse muito espichado e sofresse um afundamento no meio. Aí debaixo ele colocou a bacia. O lençol de casados aumentava a área em relação à bacia em muitas vezes e... Heureca! Enchia em pouco tempo alguns litros da água destilada.

Meu pai e meu avô se completavam. Enquanto vovô tinha um espírito mais voltado para o trabalho braçal (era filho de imigrantes italianos) o meu pai se envolvia mais com a cabeça. Vovô sabia muito trem de carpintaria, eletricidade, construção, hidráulica e vai assim. Meu pai não sabia direito pregar um prego. Serrar? Procure outro. Gostava mesmo era de uns “negucinhos”! Enquanto o meu avô recolhia a água da chuva para a bateria, meu pai, provavelmente, nem sabia que carro precisava de tal, mas no momento de comprar gado ou qualquer coisa semelhante, vovô o requisitava. E assim viveram... Em algumas vezes às turras também.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 03/06/2011
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