Russa má, vilã de filme anos 80

Ela parece mulher de filme. Filme americano, ação dos anos 80; cara de soviética má, vilã. Comunista que come criancinhas e atira no mocinho. E sem perder o cigarro da boca ou o preto do lápis reforçandos os olhos. Fria e sanguinária. Mulher de filme. Mas isso não é um filme, é uma noite de sexta-feira, num bar, onde uns caras tocam rock no palco. E ela dança.

Dança como nunca dancei nem poderia. Desvairada, desviada de tudo. Não tem razão seu frenesi, não encontro. Mas tem ritmo e sexo. Olho, olho, olho, caio fascinado. É o estranho. Exótico dançando à minha frente. O absoluto desconhecido que atiça a imaginação. Fantasias rasgam meu desejo. Fogo em palha, esfumaçado e quente. Eu olho, ela dança, os caras no palco cantam. Já não sei de mim.

E nem deveria olhar. Olho por quê? É noite, é final de semana, ela bebe, eu também, e isso não diz nada, não conta. Nunca vou falar com ela nem ela comigo. Não é do tipo que vai no cinema e consegue aturar o papo cacete de caras como eu. Não é do tipo loirinha boba que estuda Direito com tipos como eu, e que só quer saber de churras e do cabelo para ir no churras. Não. Tem o cabelo preto, chanel revolto e liso. Descontrolado. Preto como o lápis em torno dos olhos. Olhos que olho e caio fascinado. Eu sei, repito-me na exata repetição de sua dança sem fastio. Cabelos pretos. Suados, desgrenhados. Dá para imaginar ela comigo?

Meu cabelo arrumadinho com mousse e dedos precisos. Rosto escanhoado, lisamente civilizado. Perfume empacotado dum Banderas, Bloom, Clooney, ou outro figurão desses. Esse sou eu. Meu eu que não é o dela. E nós juntos? Que piada! Essa minha gola por fora do moleton? Rala meu pescoço e faço que nada sinto. Gola vermelha constrastando com o branco do moleton-presente-de-aniversário. Branco contra o vermelho altivo. Altivo, decidido, conquistador, a tua cara, disse-me a vendedora da loja toda dada pro meu lado. Contei o episódio pros caras e riram da piada que nascemos prontos para entender. Mas ela a gente não entende. Eu não entendo, e bem queria. Ela dança sem cansar, escapa de mim.

Acende um cigarro. Soviética assassina que fuma LuckyStrike. Vira a cerveja. Virada brusca. Juro que vi a cerveja escorrer pelo canto da boca sedenta. Eu vi? Se há batom ali, ela tá dizendo um dane-se para ele. Bebe sem pudor, sem a frescura das minhas garotas que bebem evitando qualquer associação obscena. É boca na garrafa, sem rodeios. A garganta regada e sorriso maroto. Assumido. Eu com ela... piada. Eu que sou todo cuidados em beber para não ter ressaca. E a roupa preta – cabelo preto, lápis preto nos olhos, camisa preta, saia preta, bota preta, o preto reina sobre ela. Ela tende à sombra, e eu cá de branco com essa maldita gola vermelha que já me dá vergonha. Se pudesse tiraria. Essa minha roupa toda eu tiraria só de olhar para ela, minha comunista cruel, tudo na tentativa de ser aceito. Essa gola já sufoca e eu sei que ela é meu futuro terno. Um dia vem o terno e a gravata. Pra isso estudo. O cara que usa sempre o mesmo terno com o mesmo sorriso trouxa aprendido anos a fio em churras, cinemas de papo mole, e perfume caro que um bonitão qualquer me convenceu a usar. Esse sou eu: terno e sorriso trouxa. Pra isso é que fui parido e chorei. E ela não é isso.

Ela bebe a valer e pouco dá por mim. Posso olhar mais, sempre mais. Displicente como colegial. Disseco sua existência nesse bar esfumaçado. Ela tende à sombra e a invejo por isso, a desejo. Olho e não consigo entender. Como desejo o que não posso entender? E quando foi que escolhi não ser como ela? Em que dia tirei isso do meu eu? Já não me entendo também. Esse é o problema, não entendo ou lembro, nada. A coisa foi natural. E agora estou aqui, eu e meus grandes amigos, eles e suas grandes namoradas. Nós, os pequenos príncipes que podem ir onde quiser desde que não amassem o carro do papai. Podemos até estar nessa espelunca só por gostar de uma ou outra música dos caras no palco. Nós: palavrinha chata que me põe no meio do que de repente me dá vergonha. Ela, a garota, a russa, russa de incomuns cabelos pretos, sanguinolenta e sombria; dela vem essa torrente inexplicável que me desagrada e me envergonha. Vergonha de cobiçar cada gesto, seu ar, vergonha de me perder nas fissuras daquilo que ela me desperta.

Ela não liga, nem que soubesse ligaria. Ela bebe mais. Não para de beber. Já contei cinco cervejas. É que não paro de olhar. Fixo. Hipnotizou-me. O cigarro já morreu e renasceu uma porção de vezes em sua boca, e esses eu não consegui contar. Eu já fumei, mas parei. Para os estágios até o amarelo dos dentes ferram com a gente. Não tem como esconder que é fumante. Que vontade dum cigarro a plenos pulmões! Beber ainda bebo, mas não daquele tanto. Amanhã à tarde tem futebol, domingo churras – essa constante em minha vida, eterna lei dos meus domingos -, e segunda-feira é outra semana de academia. Não posso beber muito numa sexta à noite, é quebrar o encadeado. Eu, meu terno, o sorriso frouxo e o pacote de vida que me obriguei a comprar: o encadeado. O clareamento dental, nada de refrigerantes, a conversa sacal no vestiário: o encadeado. Minha legenda. De repente quero fugir disso. E poderia. Poderia?

Chega, não dá mais. Preciso sair daqui. A gola, a fumaça, o refrão, a russa, qualquer coisa me aperta. Sufoco. Preciso dum ar, digo pros caras. Fazem piada. Seu fresco. Faço cara de mau, é minha cara de contrariado e meus amigos sabem. Foi treinada desde os meus cinco anos quando ganhei um Mega Drive enquanto queria mesmo um Super Nintendo. Patético e só agora noto. Ainda assim a cara de mau fica, hábito irresistível. Mando eles à merda e saio em direção à porta. Surpresa. Ela me olha. A soviética e seus olhos contornados de preto que me olham. Qual a cor deles, dos olhos? Fico envergonhado sem saber o porquê e baixo o meu olhar. Não enfrento, fujo. E não consegui achar cor nenhuma. Merda. Ando depressa, sair, preciso sair. Olho para trás. Surpresa. Ela ainda me olha, olhar afiado feito punhal, destroça algo de mim. Sair. Rápido. Ar. Tropeço na porta, quase dou com a cara na calçada. Mas eu vi. Sei o que vi. Ela, assassina imperturbável, olhou e depois sorriu. Para mim, ela sorriu para mim. Marota, perversa, cruel. Vilã de filme americano anos 80 escrachado, comunista má que se diverte com a desgraça desses porcos capitalistas. Sorriu triunfante. Sorriu do presságio. Sorriu da comédia que o mocinho encarna.