CANÁRIO-DA-TERRA

Bicho fala? Não, bicho não fala claro. Falar é um privilégio da espécie humana. Para isto teve de desenvolver muito um setor do cérebro e desse modo a área cerebral correspondente à boca, língua etc. é uma das maiores, se não for a maior de todas. Paralelo a isto também teve de remodelar muito às áreas correspondentes as mãos e principalmente a do polegar para a espécie ganhar o status ocupado. Encrenca danada, não é não? Isto não interessa ao que vou escrever hoje. Gosto de divagar. Mania antiga.

Não há quem possa negar que os outros animais se comuniquem. Verdade? Então eles não falam o que nós falamos, mas se entendem, alguma linguagem há de ter. Imagine, eu, por exemplo, ouvindo dois ou mais chineses japoneses ou qualquer dialeto africano. Entendia bulhufas! No meu modo de entender, será igualzinho a ouvir um canário-da-terra ou, mais modernamente, um trinca-ferro estrebuchar de cantorias que não entenderei nada. Eu penso que tantos os passarinhos se entendem entre eles tal como os falantes humanos referidos aí atrás.

Alguns animais sabidamente se comunicam através de sons os mais variados. As baleias, os golfinhos e os elefantes são exemplos. Os paquidermes são hábeis receptadores de sons de baixa frequência. Conseguem encontrar água pela sensibilidade inigualável nas suas patas. Aí a matriarca, velha experimentada e vivida, deve cochichar alguma coisa para o resto do bando e lá vão enfileirados e sem erro ao local de onde foram gerados os ruídos. Já foram feitos testes e isto não é história da carochinha, não!

Pois eu acho que passarinhos, então, tendo canto devem ter um vocabulário variado e morrem de rir da gente imbecil que não os entende. Lembro-me de quando morava na roça a minha avó deitava muitas galinhas chocas em vários ovos. Mãe e filhotes ficavam, sei lá quanto tempo, presos no pinteiro. Este era construído de maneira que os pequeninos podiam sair e ciscar ao redor, mas a galinha não passaria por entre as ripas. Se aparecesse um gavião ou qualquer coisa que ela julgasse nociva, cacarejava algumas “palavras” e todos os filhotes se recolhiam debaixo do pinteiro ou, se ele não houvesse, todos se refugiavam debaixo de arbustos, ramagens ou mesmo sob as asas da mãe protetora. Passado o perigo, ela “falava” alguma coisa e todos saiam no mais perfeito crédito de confiança com as orientações que já deviam ter sido colocadas, como num chip, no cérebro de cada um. Aqueles que não tivessem por alguma razão o chipinho lá seriam alimentos de gaviões e outros carniceiros. Aquela linhagem genética ia pro brejo e não transmitiriam aquela falha a seus descendentes. Isto faz parte da seleção natural das espécies. É “vero”!

Eu e Guilherme armamos a gaiola equipada com um alçapão e com um “canário chama” muito bom à margem da estrada e pendurada na cerca de arme farpado. Sempre a gente arranjava um lugar maneiro para dar chance ao outro passarinho pousar antes próximo à gaiola e não sobre ela. Não demorava muito o “chama” – não sei a razão deste nome. Bem poderia chamariz como chamador, para nós humanos claro – mas eles deviam achar ridículo, pois na verdade eram bravos lutadores, brigões na mais lógica acepção da palavra.

Iniciavam com uns piados (palavras com significados, de certo). Se o outro em liberdade respondia, configurava a baderna e começava um festival de palavrões. Eles não estavam ali para bater papo. O “chama” queria de verdade ver o idiota do seu opositor dentro do alçapão. Ficavam algum tempo num debique light:

- Ô seu frouxo, venha aqui se você for macho! Dizia o que estava na gaiola.

- Se eu for aí vou te depenar todo e deixar a tua cabeça careca, seu veado!

Notar que os xingamentos estão aumentando de intensidade. Em certo momento a coisa envolve família, irmã e até mãe do que está solto, pois a finalidade de um excelente “chama” é trazer o outro para a gaiola. Pousando sobre as varetas para tentar bicar o infeliz preso ficaria mais vulnerável ser bicado pelo de dentro, principalmente nos pés. Até uma unha ou mesmo dedo um já vi arrancado. Luta feroz. Já aprendi, com a experiência adquirida em tantas pegas: quando um deles chia mais ou menos assim: - “shen, shen, shen” é porque está doendo, um tá travado no outro e dói. Significa mais ou menos como ui, ai! Varia aí a entonação da palavra. Eles não se avexam de liberar os seus sentimentos. Não são falsos. Mas eu imagino a quantidade de palavrões que sai daqueles bicos.

Por vezes eles ficam um tempão se destratando de longe. Então o da gaiola disse ter visto a mãe dele no maior amasso com um pardinho de merda que ainda nem sabia piar direito na moita do cafezal. A irmã dele é uma rampeira descarada e por aí. Então, mestre, o de fora cai na provocação e chispa para cima do outro. Brigam, brigam; shen, shen para lá e pra cá até que o “chama” bem treinado dá uma folga e vai à vasilhinha de canjiquinha come e bebe numa outra. O bestão do liberto tenta fazer o mesmo na canjiquinha dentro do alçapão e pronto!

Debatia muito e nós corremos receosos de que ele pudesse soltar-se empurrando com seus saltos a tampa da armadilha. Mas chegando perto vimos o “canarinho chama” deitado de costas, perninhas agitadas para o ar, tremendo todo, trinando e girava a cabeça de um lado e pro outro. Olhinhos fechados. Pensei que tivesse sido atingido mortalmente pelo outro. Parou aquilo tudo, bebeu água, olhou para o desafeto preso no alçapão e iniciou aquela mesma cena. Uma graça! Não era nada daquilo que estava pensando. Ele estava quase morrendo de rir do outro.

No dia seguinte a Isa me perguntou com o que eu estava sonhando e dando tantas gargalhadas daquele jeito:

- Eu balancei muito para que você acordasse!

- Eu? Eu não! Quem estava histericamente gargalhando era o “canário chama” deitado no fundo da gaiola...

- O quê?

Terça-feira, 11 de outubro de 2007

Dbadini
Enviado por Dbadini em 19/06/2011
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