VACA LEITEIRA

Hoje vou falar de umbigo. Não pensa que vou dizer dos caprichados, enfeitados com piercing ou quaisquer outros badulaques atualmente em uso. Vou falar daquele que todo bebê tem e depois de certo tempo cai.

Não sei como é hoje, mas lá na roça e na época em que eu nasci, guardava-se o umbigo desgarrado e depois o enterrava num lugar jeitoso para que trouxesse sorte para seu dono. Assim, ó! Se os pais desejassem que o filho fosse um bem-sucedido comerciante, enterrava-se o umbigo na porta da venda; se agricultor, na lavoura do milho ou café e por aí afora.

Quando eu nasci, negócio de lavoura estava decadente, indo pro brejo. Café quebrando todo mundo, cana idem e despontava então a criação de gado. Era a salvação da pátria ter vacas de leite. Por aí você já imagina onde o meu umbigo foi parar. Certo! Enterrado no curral das vacas de leite do meu avô.

Cara! Deu tudo errado! Tudo contrário! Detesto vaca, boi e leite nem se fala. Conversando com o Doutor Nilson, bom mineiro de Barbacena e, portanto, entendedor de fazenda, leite e outras mandingas relacionadas, ele me desvendou o mistério até então existente. Disse-me que o umbigo tem de ser enterrado no esteio da porteira do curral, caso contrário não funciona. Nem vou contestar! Não vou duvidar nunca da sapiência em mineirices do Doutor Nilson.

Naturalmente mamãe pediu para meu pai para realizar aquela tarefa. Ele, incrédulo de carteirinha e Ph.D em anticredos e crendices, deve ter enfiado aquele umbigo seco embrulhado num pedaço de linho branco no primeiro monte de bosta fresca que achou. Duvido que fosse procurar uma ferramenta, fazer um buraco menor que fosse ao pé do esteio da porteira e enterrar aquilo. Não deu outra!

Eu não entendo como existe gente que adora ter vacas e vender leite. Nunca vi um negócio tão furado como esse. Presta atenção e me acompanha no raciocínio: você tem que comprar terras boas: nota preta! Fazer pastagens, capineiras, providenciar boa água: nota preta! Cerca de arame farpado, cerca elétrica, mourões: nota preta! Empregados, encargos sociais: nota preta! Construir estábulos, adquirir ordenhadeira, resfriador de leite, latões: nota pretíssima! Comprar novilhas, deixar crescer, fazer inseminação, esperar não sei quanto nascer a cria, dar ração, medicamentos: nota preta ou pretíssima! Então ordenha e manda o leite para a Cooperativa... Ah! Ah! Ah! Não tem nota para leite! Não existe nota menor que um real, o mané!

Leite custa centavos para o produtor, brother! Uma xícara de café (disse xícara, das pequenas, não é média!) é mais cara que um litro de leite! Ah! Ah! Ah! Quer saber mais? Um copo de água mineral, brota da terra, custa nada, vale umas cinco ou dez vezes mais que UM LITRO de leite, meu camarada! É mole! Como é que pode? Ah! Ah! Ah!

E, ó! Há pessoas que adoram ficar no estábulo horas vendo aqueles peitos das vacas desse tamanho. Eu acho que existem outros melhores, mesmo recondicionados com silicone, ainda mais agora que algumas mulheres liberaram geral e resolveram soltar a franga numa boa. Gostar de vaca leiteira só pode ser doença, praga de mãe, mau-olhado ou outras mumunhas dessa natureza.

Não gosto nem do cheiro do leite, graças a Deus e ao papai, provavelmente! A Isa de vez em quando ainda insiste para eu beber um pouco. Boa mineira tem mesmo que valorizar o produto, inventando que vai fazer com açúcar queimado, canela ou com chocolate.

Engraçado! A palavra chocolate fez lembrar-me da minha avó Zipina. Ela não pronunciava corretamente de jeito nenhum esta palavra, sempre dizendo “chicolate”! Alegava ser filha de estrangeiros e a língua dela não dava, enrolava e trupicava em certas palavras difíceis.

Era filha de italianos, criada na roça e desde cedo enfrentou, além dos afazeres domésticos, foices e enxadas na agricultura e não se empenhou nos estudos. Escrevia seu nome para votar no Getúlio, assinar alguns documentos e lia muito mal. O pior era quando ela nos contava o que havia lido: absolutamente não tinha a menor relação com o texto. A gente não ligava. Ela era boa demais e isso tudo era superado com lucros.

Meu avô era mais esperto, apesar das mesmas origens. Na fazenda existia um único livro, um dicionário enorme, Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, evidentemente sobrava um monte de letras, na grafia original, disso que escrevi aí. Ele ficava chateado quando ela pronunciava errado, mas não adiantava.

Um belo dia lascou o “chicolate” novamente e meu avô foi logo tentando corrigir mais uma vez:

- Zipina! Não é chico... Nem acabou.

- Eu falo chocolate, chicolate, chicomerda! Eu falo o que eu quiser!...

Rapaz! Não sei o que deu na velha naquele dia. Ela disparou a metralhadora e soltou a cachorrada em cima pra valer! Meu avô olhou para mim assustado, deu uma risadinha e ambos saímos de perto. O trem tava brabo!

Não rimos da palavra errada. A gente já estava até acostumado. Estranhamos a reação e por isso achamos graça, mas isto vovó, foi naquele dia, pois no momento em que escrevo esta droga de texto, eu estou chorando e com muita saudade de você! Ah! Quanta falta você está fazendo! Como eu gostaria de ouvir de novo você falar chicolate!

Eta! Budega, sô!

Ocorreu-me agora também esta expressão que você eventualmente usava. O corretor do meu editor de texto está alertando que a palavra está errada, mais ou menos parecido com o que vovô fazia com você! Tá errada merda nenhuma! Vai ficar assim mesmo! Não era assim que você falava, vovó?

23/12/2004.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 20/06/2011
Código do texto: T3046206
Classificação de conteúdo: seguro