Travessia

Antenor Simões não terá possuído muita coisa. Mas o pouco que possuía era muito seu. Especialmente porque, de tanto leva-lo consigo, acabara por sentir indispensáveis todas aquelas realidades: suas botas, sua capa gaúcha, suas poucas roupas, sua sela e seu facão.

Haviam partilhado de tantas coisas juntos, que acabara por apegar-se a tudo aquilo. Mais do que coisas suas, senti-as como partes de si mesmo, como realidades da sua própria história. Vivia nelas a continuidade de sua história, história com todo um passado por esses campos gerais. Todo homem que está a caminho sente a tentação do passado, tentação que se concretiza no ato de possuir, de não abrir mão do que tem.

Ao chegar à margem daquele rio, teve que enfrentar uma opção dura. Aquela realidade do rio que atravessa em seu caminho como um corte, exigia que ele tomasse uma decisão dolorosa. Não que não quisesse atravessá-lo, pois, para isso, se pusera a caminho. O duro não estava em vadear o rio, mas no fato de que, para vadeá-lo, devia assumir uma atitude nova, perante todas as coisas velhas, perante tudo o que era seu, perante tudo o que se lhe tinha aderido ao longo do caminho.

Todo bicho obrigado a trocar de pele procura se abrigar, até mesmo a lagarta em vias de se tornar mariposa. Para poder crescer até o ponto de voar, precisa aceitar o retiro do casulo. A rosa e a lagarta o fazem por instinto. Ao homem, por ser homem, cabe decidi-lo.

Ao chegar à margem do rio Grande, nosso homem, se acocorou em silêncio. Antes de se despojar por fora, precisava unificar-se por dentro. Precisava encarar a correnteza, deixar que ela lhe entrasse pelos olhos e lhe adentrasse o coração. Precisava deixar que o coração atravessasse primeiro, para poder segui-lo com o corpo. Naquela atitude deixou que transcorresse toda a tarde, e a noite o envolveu com todo o seu mistério. A estrela matutina o pilhou naquela atitude. Foi somente então que disse “sim”, um sim que o vinha tangendo desde longe, o mesmo sim que o pusera em movimento desde o começo.

Devagar se pôs de pé, despojou-se da capa gaúcha e a estendeu sobre o solo. Tirou as botas e as pôs no centro. Em seguida foi a vez do facão, do lenço, da faixa e das pantalonas. A cada coisa que entregava, o homem ia ficando mais pobre. Os grandes momentos da vida dispensam dramatizações. O drama é cenário fictício exigido por certos acontecimentos, que carecem de suficiente valor para nos causar impacto por si mesmos ou que não foram aceitos pela ruminação e nos resultam indigestos.

Por isso Antenor, sem brincadeira e sem drama, atou as quatro pontas da capa que continha tudo o que lhe pertencia. Volteou-a três vezes, como se fosse um laço, para dar-lhe impulso e a atirou por cima da correnteza, a fim de que fosse cair na outra margem. Deste modo colocava seus pertences no mesmo lugar onde devia chegar. Fez com que suas posses o precedessem, para esperarem por ele na meta visada.

E ali ficou postado, na margem de cá, liberto de tudo, a fim de poder vadear melhor aquele rio e, necessitado de vadeá-lo, para poder se reencontrar com tudo o que lhe pertencia e que o precedera. Era um homem que amava profundamente o que possuía.

Amava profundamente o que possuía!

Há mais de vinte e três séculos atrás, um jovem salmista, a quem aconteceu algo parecido, dizia ao Senhor Deus num longo poema:

Sustenta-me, conforme tua promessa,

e eu viverei;

Não deixes que minha esperança me envergonhe. (Salmo 118)