Dostoiévsck

Entrou em casa, estava cambaleando, sentia o corpo doído, se perdia nos próprios pensamentos, colocou uma música para tocar, um pop rock lento, desses feitos para chorar, mas que não faz ninguém chorar porque mais que para fazer alguém chorar serve para colocar dinheiro novo no bolso dos artistas, ele não chorou, não esperava chorar, pegou um livro na estante abarrotada de surpresas, abarrotada porque haviam muitos livros, e surpresa porque jamais lera nenhum até o fim, Dostoiévski parecia bom, sabia décor até a página vinte, nunca passara disso e sabia que jamais passaria, achava graça na forma como Dostoiévski escrevia, um jeito meio louco, também achava graça na voz que enchia o lugar, também achava graça de si, um ser fétido de três dias de farra pelas ruas, com cigarro e bebida embrenhados nas entranhas soltando aquele odor no mínimo extravagante, não lia quando bebia, bebia enquanto lia, mas aquilo não se aplicava aquela noite, então mesmo bêbado leu, mas não bebeu enquanto lia, apenas fumou, em geral não fumava enquanto lia, achava estranho prestar atenção no cigarro e no livro, mas aquilo também não se aplicava. Soltou um anel de fumaça enquanto leu a segunda palavra que contava a história, nunca havia conseguido fazer anéis de fumaça, nunca tentara de verdade, mas naquele dia, por ironia do destino conseguiu a proeza, puxou o cinzeiro para perto e deixou as cinzas como lembrança, para quem? Coisa que ele também não sabia, não sabia por não querer saber, é só um negócio de não se importar. Então de repente, como uma convulsão surge assim do nado, ele riu, um riso gostoso, bom, mas surpreendentemente não parou de ler, lia e ria, e fumava, e pensava, coisa estranha fazer tanto e nada assim num tempo curto, suas engrenagens funcionavam agora, o trem estava no trilho, ou fora, ou apenas estava em um carro desgovernado em estrada de terra, ou talvez nunca fora um carro na estrada, apenas um ser fugindo, da floresta verde, correndo para um canto assim como se corre para salvar qualquer coisa, uma coisa estranha, que não se sabe o que é, apenas é, e tem que ser salva. Assim ele ria, para salvar, o que? Não importava, mas que tinha que salvar tinha, e se tinha o faria, então riu mais, riu-se de tudo, das palavras que lhe fugiam a mente e atravessavam ele mesmo como se ar estivesse o lugar, riu-se da música e a voz, que não dizia nada de nada e significava pouco de tudo, que tudo nada era, e parecia mais ser muito de pouco, entender aquilo, não importava, entender era uma coisa que não pretendia mais fazer, era coisa para outros, coisa para quem achasse a musica boa, nunca havia achado aquela musica boa, mas ouvia, todos ouviam, então ouvia, nunca achara boas as palavras de Dostoiévski, mas ouviu uma vez que não era para achar bom, era para ler e refletir, nunca conseguira refletir sobre o que não era bom, então lia, sem refletir ou achar bom, era só uma coisa que tinha que ser feita, como tudo tinha que ser feito, trabalhar, disso ele também riu, acordar todos os dias as seis horas, tomar café, outra coisa que era engraçada, porque café, porque não tomava leite ou chá, café era engraçado, escovar os dentes, que ganharia ele em escovar os dentes, ele não sabia, não sentia o cheiro da própria boca e quando morresse teria monstros do tamanho de grãos de areia embrenhados entre os dentes, roendo a carne, destorcendo os ossos, e deixando apenas um nada grande, talvez um nada cheio de alguma coisa, uma coisa que fizesse as pessoas chorarem, isso também era engraçado, afinal porque as pessoas choravam, não havia sentido em chorar por um morto, tinham que rir-se, isso sim, rir-se se o morto fosse bom, porque tiveram a oportunidade de conviver com ele durante o tempo que a vida, ou a morte, deixou, e rir-se se o morto fosse mau, porque ele morreu e não poderia mais fazer mal a ninguém. E riu-se mais, riu-se de quando era jovem, e achava que poderia mudar o mundo com uma caneta e um papel, mas aquilo era estranho, mudar um mundo tão grande com duas coisas tão comuns e pequenas, e se era estranho, engraçado também era. Imaginou-se em um cavalo branco, com um chapéu grande se penas multicores, e uma espada, e riu-se, então percebeu que fazia mais sentido em um pangaré, vestido de couro com parnaflenalhas e embroligangas por todos os lados, em vez de uma espada uma espingarda, ou como seja o nome da arma que imaginou, mas aquilo também não estava certo, então imaginou sem montaria, de boné em vez de chapéu, olhos fundos perdidos em um lugar inexistente, um macacão jeans sujo, cheio de uma coisa preta, e uma camiseta escarcelhada branca que mais parecia amarela, ou uma cor entre as duas, talvez um pouco de marrom misturado, formando um tom estranho de branco, ele sabia que era brando, como? Não sabia, mas sabia. Riu-se disso também, a última imagem parecia um tanto com um ser que via todas as manhãs, assim que olhava para o espelho, uma imagem que bem sabia ele que não era ele, era alguém, não ele, talvez alguém de seu passado, podia ser uma coisa de outra vida, ou coisas assim, se ele acreditasse que isso de outra vida existisse, não, não existia, uma vida só já era castigo o bastante, e se realmente existia um deus, como ele duvidava, mas se existisse não seria tão maldoso para permitir que um mesmo ser tivesse duas existências, aquilo parecia doloroso demais, aquela idéia causava ânsia, não ânsia de querer, ânsia de vômito mesmo, e veio, gosmento, cheio de qualquer coisa branca ou vermelha, os olhos já não viam mais tão bem, talvez estivesse ficando daltônico, nunca ouvira falar de daltonismo surgido do nada, nunca fora daltônico, mas quem sabe estivesse ficando, nunca ligou muito para medicina, mesmo tendo freqüentado um tanto de aulas na faculdade, mas acabou, era passado, além disso nunca se viu com um diploma de médico, era coisa estranha. Outra ânsia, mais um pouco da coisa de cor indefinida, uma dor excruciante, ou cruciante, nunca entendeu o porquê de duas palavras significarem uma mesma coisa, mas preferia a primeira, cruciante ou excruciante a dor existia, e era dolorida, talvez mais dolorida do que ter outra vida, mas duvidava se iria descobrir, o liquido também sem cor definida começou a descer mais fervoroso, ele sabia que estava descendo, desde a briga com o loiro bronzeado, de uma cor estranha, também engraçada, no bar, se não se enganava muito ele rir da cor é que fez o cara loiro de cor engraçada o atacar, com a faca que levava, não sabia porque um ser vivo saia de casa com uma faca, mas aquele saiu, e não era pequena, e causou uma ferida grande, que não tinha doído até então, e agora doía, porque? Bom quem sabe, talvez deus, se ele existir saiba, ou não, era entranho alguém saber de tudo, tudo era muita coisa, e seja quem fosse deus não podia saber de tudo, tudo era muito, ele deveria saber um pouco, um pouco já era muito considerando pessoas como ele que não sabiam nada, então um pouco estava de bom tamanho, tudo era coisa demais, ele não queria saber tudo, imaginava que ficaria louco, mas mesmo louco sabendo tudo, não saberia tudo, porque não saberia como era não saber, não saberia como era saber nada, então ninguém pode saber tudo, mas talvez se ele soubesse tudo saberia que aquele corte o levaria a morte, e que depois de umas horas o sindico viria gritando que se ele não abaixasse o som alto quebraria a porta, como ele estava caído e morto não poderia abaixar o som, então o sindico cumpriria o prometido, quebraria a porta entraria e o encontraria caído sobre a penúltima página de Dostoiévski manchado de vermelho, porque o sindico saberia a cor, já que não era daltônico, e nem ficaria.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 23/07/2011
Reeditado em 29/08/2011
Código do texto: T3113751
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