Antes de dormir

O telefone tocou, ele apenas olhou, um novo toque, ele não queria atender, mas antes que soasse o terceiro toque pegou, praguejando, o telefone.

- Alô – a voz dele estava mais rouca que deveria, provavelmente por culpa do conhaque que ainda marcava gosto em seus lábios.

- Ainda está acordado? – a voz de mulher o surpreendeu.

- Porque está me ligando uma hora dessas? – ele disse mal humorado.

- Eu vi uma matéria na televisão – ela respondeu desajeitada.

- Pois fale logo o que tem pra falar – inquietou-se ele.

- Era só que parecia interessante, sabia que o sol não é fogo – ela não parecia tão interessada no assunto.

- Pois o que é então? – irritou-se ele.

- Não entendi direito, algo com plasma – um breve silêncio se instalou.

- Não era isso que queria falar – ele disse mais calmo – diga logo, o que é?

- Você é desconfiado demais – indignou-se ela.

- Desconfiado eu, quem colocou a mãe para seguir quem? – ironizou ele.

- Eu estava preocupada com você, só isso – ela disse, mesmo sem ver bem sabia ele que ela estava fazendo beicinho, conhecia bem, ela juntava os lábios de uma forma esquisita e unia as sobrancelhas, assumia um olhar de cão sem dono, ele sempre odiara aquele rosto.

- Preocupada, bem sei mesmo – ele forçou uma risada enquanto tomava mais um gole de conhaque, que até soltou conhaque pela narina.

- Não acredita? – ela ainda estava com voz de beicinho.

- Não – ele gritou – e diz logo pra que ligou, está me atrapalhando.

- Você não está fazendo nada – ela riu.

- Pois como você sabe?

- Está apenas sentado naquela poltrona que lhe custou dez meses e trabalho tomando conhaque barato – sabichou-se ela.

- Pois a poltrona é minha, e se o conhaque é barato isso é culpa sua, se não fosse por você eu não tinha que pagar esta merda de apartamento – ele sentiu o sangue subir, mas manteve a voz calma.

- Então preferia estar morando na rua e tomando conhaque do mais caro?

- Estávamos muito bem na nossa antiga casa – ele tomou mais um gole do conhaque e voltou a encher o copo de trezentos mililitros com a garrafa que estava ao seus pés.

- Ah sim, claro, com goteiras quando chovia e sauna quando fazia calor – ela riu ironicamente, uma risada cansada, desgastada.

- Não foi para humilhar meu conhaque me ligou não é, se não já que eu desligo – ele disse nervoso.

- Não, não, não, apenas queria ouvir a sua voz, faz tempo que não nos falamos, sinto sua falta – ele sentiu a carência na voz dela.

- Também sinto sua falta – precipitou-se ele.

- Pois nos vemos tão pouco nos últimos tempos, nem temos mais tempo para conversar, só assim mesmo, no meio da noite por telefone.

- Você também, nunca me escuta quando tento falar com você – ele não queria parecer rude ou rancoroso, mas isso não impediu que parecesse.

- Me desculpe, mas é que você também nunca quer me ouvir, parece que tem uma coisa, sabe entre a gente, parece que cada vez que tento falar com você, você não tem tempo, ou sei lá, parece que sempre anda tão apressado, sei que trabalha e tudo, mas tinha que tirar um tempo, pra gente sair, sei lá, ir pro cinema ou qualquer coisa parecida, sabe, um tempo pra nós.

- Não sei, quer dizer, eu sei, ando ocupado, é que é tanta conta pra pagar, e preciso trabalhar, sabe, telefone, água, luz, gás, celular, aquele vestido que te dei no natal.

- Agora a culpa é minha? – indignou-se ela.

- Não é sua, mas êta vestidinho caro viu.

- Olha aqui, você não vai jogar responsabilidade pra mim não, se deu foi porque quis, eu não pedi, você que foi lá e comprou, além disso também te dei presente, então não reclama.

- Chega, se continuar assim vou desligar.

- Não...

- Então, que queria falar?

- Eu já disse, estava com saudades.

- Ah, corta essa, fala logo o que você quer, afinal.

- Quero nada, para de falar isso, eu só...

- Só o caramba, te conheço e não é de hoje, diz logo pra que porra você me ligou, se não vou desligar – ameaçou ele.

- Traz um copo de água quando vir para a cama, esqueci de pegar antes de deitar – desistiu ela.

- Porque não levanta e pega?

- Você ta mais perto da cozinha oras, e vê se não me amola certo, só pega a água.

- Tá, que seja, tch..

- Não espera.

- O que é que foi agora?

- Você realmente sente a minha falta? – ela falou esperançosa.

Ele ficou em silêncio, e depois de poucos segundos desligou.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 26/07/2011
Reeditado em 31/08/2011
Código do texto: T3119144
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