Comadre seca

De três em três meses, os três irmãos gêmeos se reuniam na casa de um sobrinho, filho de um irmão mais velho deles, já falecido. Apolinário, Aparício e Aprígio tinham 85 anos. O sobrinho, Leandro, era um analista de sistemas de 33 anos, que morava sozinho e passava o dia inteiro no computador atualizando blogs e inventando games.

No dia marcado para receber os tios, o rapaz preparava o enorme tabuleiro na mesa de jantar, colocando as peças exatamente nos mesmos lugares que tinham ficado três meses antes, após a última partida. O jogo, inventado pelo sobrinho, chamava-se “Comadre seca”, e era, para os três velhos jogadores, o maior prazer de suas vidas.

Numa ponta do tabuleiro ficavam três peças representando cada um dos três jogadores. De cada peça partia um caminho quadriculado e retilíneo, com dezenas de casas, que ia até a outra ponta do tabuleiro. Ali, três outras peças eram posicionadas, cada uma em um caminho, na mesma linha da peça que ficava do outro lado. Elas representavam três “comadres secas”: três velhas enrugadas, vestidas de preto e segurando na mão direita uma enorme foice, pontuda e afiada.

Na verdade, as peças que andavam eram as comadres, e naquele dia, a comadre que estava à frente era a do Apolinário, seguida pela do Aprígio e, por último, pela do Aparício. A comadre que chegasse primeiro à peça representando o seu jogador dava a vitória a ele.

Mas como as comadres se movimentavam?

De três em três meses, na hora marcada para a partida, cada jogador levava à casa do sobrinho uma pasta contendo vários exames. Para não cansar o leitor, vou citar apenas alguns: Hemograma, Uréia, Creatinina, TSH, Glicemia, Colesterol, Triglicérides, Densitometria óssea, Teste Ergométrico, Ecocardiodoppler [Ultrassom do coração], Exame de Próstata, Ultrassom de abdômen, Medição Ambulatorial da Pressão Arterial, Urina, Fezes e muitos outros. De posse de todos os resultados, o sobrinho ia para o computador e cadastrava as centenas de números e dados qualitativos em um sistema desenvolvido por ele, onde cada jogador tinha a sua tela, com vários campos de preenchimento. Depois de processar os dados de cada irmão, o sistema estabelecia um número para cada um, que indicava quantas casas as comadres secas deveriam andar.

Na última partida, devido a um resultado bastante satisfatório na glicemia do Apolinário [sua glicose foi de 150 para 250], e também ao fato de terem sido detectados traços de sangue em suas fezes, sua comadre avançou três casas, enquanto a do Aprígio avançou duas e a do Aparício só uma. Aparício ficou muito chateado, pois ele tinha abandonado de vez a caminhada havia quatro meses, na esperança de que o seu colesterol atingisse níveis mais altos, o que não aconteceu. Já o Aprígio havia contado com o aumento do prolapso em uma das valvas do seu coração, anomalia que tinha um peso muito grande na contagem dos pontos, o que também não aconteceu – embora a sua urina estivesse numa situação bem favorável, com uma coloração turva e cheiro muito forte, o que acabou colocando a sua comadre em segundo lugar.

Nos três meses que Apolinário ficou na dianteira, os outros irmãos tiveram que satisfazer uma série de caprichos seus, conforme determinavam as regras do jogo: levar café na cama para ele todas as manhãs, ler para ele os contos de Edgar Allan Poe à noite, antes dele dormir [a sua visão não estava muito boa], esfregá-lo na banheira todas as tardes, preparar sua comida seguindo um rigoroso cardápio, e muitos outros. Aprígio, que havia ficado em segundo lugar, pôde escolher quais caprichos atender, ficando o resto para o Aparício.

Para o que estava na dianteira, era uma maravilha. Mas mesmo para os outros dois irmãos, esse período de desvantagem temporária era divertido, pois eles sempre tinham novas estratégias para colocar em prática visando a melhorar seus resultados na próxima partida: fumar mais, exercitar menos, aumentar a dose diária de cachaça [ou trocar a cachaça de melhor qualidade por uma mais vagabunda], aumentar o consumo de doces e gorduras, escolhendo sempre os produtos mais calóricos, etc.

Naquele dia, os dados foram preenchidos num clima de muito suspense, pois um irmão não mostrava nem comentava seus exames com os outros, e a palidez, os olhos fundos e o leve tremor observado nas mãos do Aprígio pareciam indicar que o primeiro lugar seria dele. Mas não foi o que aconteceu. A comadre seca de Apolinário avançou mais três casas e as dos outros dois somente uma. A glicose continuou pesando no destino do velho Apolinário, embora já não houvesse nenhum traço de sangue nas suas fezes. Mas surgiu uma novidade: o aumento da sua creatinina indicava algum problema grave nos rins. Apolinário sabia que este seria o seu trunfo, por isso entrou na casa do sobrinho com aquele ar superior e arrogante, como se cantasse vitória antes da hora. E não deu outra: mais uma vez seus caprichos teriam que ser atendidos pelos irmãos.

Naquela mesma noite, porém, Aparício teve um enfarte fulminante e morreu no banheiro, enquanto preparava um banho especial com sais aromáticos para o Apolinário. Dois dias depois, Aprígio perdeu o equilíbrio no quintal, enquanto estendia as cuecas de Apolinário no varal, e bateu a cabeça numa pedra, vindo a falecer alguns minutos depois.

Apolinário foi morar com o sobrinho, que cuidou muito bem dele por três anos.

Por que três anos? O velho morreu? Não. É que dois meses depois de Apolinário completar 88 anos, o sobrinho, que tinha 37, morreu atropelado na calçada por um motorista bêbado, deixando todos os seus bens para o tio, que viveu até os 98 anos, lúcido e feliz.

Na hora da partida, a comadre entrou, silenciosa e sorrateira, no quarto de Apolinário. Quando o velho sentiu sua presença, lembrou-se de um belo poema de Mário Quintana e disse, sorrindo: “Ê comadre... a senhora sempre chega pontualmente na hora mais incerta... Mas que importa, afinal? Entre... Estou pronto”.

E partiu.

P. S.: “Comadre seca” era como o grande cineasta italiano Pier Paolo Pasonili (1922-1975) chamava a morte.