Das profundezas

Vou te contar uma história das mais assustadoras:

Uma vez, um jovem milionário estava à procura de uma experiência nova que lhe preenchesse o oco do espírito (que rugia de fome em seu vazio mudo desde o apagar das emoções produzidas por sua última façanha). O espanto que ele havia sentido quando vira da janela de um ônibus espacial a Terra azul cercada de luzes e trevas no silêncio do universo sem fim já não era mais que uma lembrança fugaz, uma imagem distante, só resgatada das sombras da memória quando seus olhos percorriam o álbum 514 do seu perfil no Facebook (o que ele já nem fazia mais, entediado com esse registro antigo de uma experiência velha e insossa).

Não, aquilo já era passado. Ele precisava de algo novo, diferente de tudo que já experimentara: um susto que lhe permitisse tocar (ou mesmo adentrar) no mistério da vida: algo que lhe desse medo de verdade, que fosse realmente terrível. Um risco calculado e certo. Uma chance em cinco...

De quê?

De morrer, é claro. O que mais lhe faltava experimentar?

A perspectiva difusa da morte ele tivera diversas vezes nos saltos e escaladas que realizou nos quatro cantos do mundo, nas ferozes corridas de carro e de moto que competiu em vários países da Europa e da América, nos mergulhos com tubarões brancos nas águas frias do sul da África...

Não era disso que ele precisava naquele momento para sair da letargia que o tédio lhe provocava, para se arrancar da lama movediça do enfado que o cercava de vazio. O risco de morte, para ele, tinha que ser certo. A sua entrada no tenebroso mistério da vida tinha que ser uma possibilidade precisa, rigorosa, determinada pela sorte. Como num jogo de dados.

Mas a morte rápida e vulgar de uma roleta russa estava definitivamente descartada de seus planos. A morte não podia ser instantânea. Ela tinha que ser rápida o bastante para que o sofrimento físico não se prolongasse e neutralizasse a dor (ou júbilo) do espírito que se apaga ou parte rumo ao desconhecido; mas tinha que ser lenta o suficiente para que esse mesmo espírito pudesse se ver e se sentir na morte do corpo, consciente da transformação em curso, da inevitabilidade do processo. Nada de se prostrar num leito, como o Ivan Ilitch de Tolstoi, e aguardar um futuro certo, mas impreciso. Nada de filosofar sobre a vida e a morte enquanto o corpo é lentamente consumido por um tumor que se espalha no sangue, como o professor João Maria, do livro de Gustavo Corção. Mas, também, nada que fosse tão banal e instantâneo como queimar o cérebro com um balaço na têmpora ou no céu da boca.

Mas ele não queria morrer. O que o fascinava mesmo era a perspectiva de um perigo real de morte: uma ameaça que fosse rigorosamente prevista e calculada.

Mas se ele morresse, que fosse uma morte branca e suave, sem grandes tormentos, que lhe revelasse o mistério lentamente, como se no frio de uma noite de outono lhe fossem abertas as cortinas de um palco e se lhe revelasse o indefinível e inominável novo, aquilo que o afastaria definitivamente do tédio mortal que lhe entorpecia a alma toda vez que realizava uma nova proeza, toda vez que comprava um novo brinquedo ou fazia uma nova viagem fantástica, gastando os bilhões herdados de seu pai.

Mas onde conseguir essa sensação de perigo ou essa morte ideal?

Um de seus inúmeros contatos internacionais lhe trouxe a resposta em menos de cinco minutos.

E em menos de uma hora o nosso jovem e enfastiado milionário encontrava-se tranquilamente acomodado em seu jato particular, tomando um Château Latif Rothschild 1787, em direção a Paris.

Nas dez horas que ele levou para cruzar o Atlântico, uma amiga francesa se encarregou de lhe conseguir uma vaga num autêntico festim diabólico, pagando adiantado ao chef responsável pelo serviço quase um milhão de dólares, para que, juntamente com mais quatro milionários entediados, ele corresse o risco de ser contemplado em um sorteio com uma morte na medida certa, meticulosamente preparada por mãos de mestre.

A iguaria era chamada em algumas regiões da Ásia de Balut. Imagino-a como a última refeição servida às almas danadas no seu longo percurso rumo ao inferno: ovos de pato incubados até que os fetos estejam quase formados, com penas, bicos, olhos e ossos, mortos em água fervente pouco antes de serem comidos. Nas Filipinas e no Camboja o Balut é vendido nas ruas, em bancas de ambulantes. Normalmente os fregueses fazem uma abertura na casca do ovo para beber o caldo, que é temperado com um pouco de sal e pimenta, para em seguida abri-lo por inteiro e se deliciarem com o feto, mastigando-o lentamente, com suaves movimentos da língua, para melhor sentirem a textura, a maciez da carne e o estalejar dos ossinhos se quebrando nos dentes.

Só que para o festim do qual participou o nosso jovem milionário, o chef francês injetou, com muito cuidado, em um dos cinco ovos Balut servidos como prato principal, uma substância venenosa preparada por ele mesmo, seguindo à risca as instruções de uma das maiores autoridades em venenos do mundo: um composto de ervas, raízes e peçonhas que, na dosagem certa, leva à morte em menos de dez minutos, com pouco sofrimento ao corpo físico, permitindo assim ao espírito captar cada instante do desabrochar dessa flor misteriosa que trazemos plantada em nós desde a primeira encarnação.

O ritual deveria ser seguido rigorosamente. O suco do embrião, que certamente conteria uma dose fatal de veneno, não deveria ser bebido no início. Primeiro come-se a cabeça, depois o pescoço, o peito e, por último, o abdômen, onde estaria concentrada a dose mortal. Só depois de ingeridas as vísceras do feto é que os primeiros sinais da morte seriam sentidos – uma dormência nos lábios e na língua –, e só nesse momento é que deveria ser bebido o caldo reservado no fundo do ovo. Seguiria-se uma sensação de leveza, como se o corpo flutuasse no ar, acompanhada de visões fantasmagóricas, relatadas com detalhes por várias pessoas que se submeteram à experiência. A morte viria em cerca de dez minutos, com a pessoa consciente e lúcida até o último segundo.

Foi exatamente isso que aconteceu naquela noite, em um luxuoso apartamento localizado na Avenue Montaigne, em Paris, ao som da “Lacrimosa” de Mozart.

Os cinco milionários (três homens e duas mulheres) receberam cada um o seu ovo das mãos de um rapaz alto e magro, de olhar vago, que, logo em seguida, retirou-se, dizendo: “Vous connaissez les règles”.

Só que, minutos depois (cada um dos participantes mastigando já os últimos resquícios do seu Balut), o vazio sombrio que castigava por dentro a alma do nosso jovem milionário fez com que ele saltasse desesperadamente sobre a filha de um magnata americano, para lhe tomar o caldo do embrião, quando ela já o levava à boca, depois de todos terem percebido claramente que ELA tinha sido a sorteada. Foi impedido por um senhor de feições caninas que se sentava à sua direita, resignado, e que, logo em seguida, impediu-o também de se lançar sobre o vômito escuro despejado na mesa pela jovem, com o objetivo de extrair dali algum resíduo fatal de veneno que curasse para sempre a dor de sua existência vã.

[Silêncio]

Entendeu a história?

Olhe para mim...

Não chore. Abra seu coração para Deus, pois Deus tudo preenche. Este vazio não existe em Deus... Sua vida sem limites criou para ti este tormento. Falta humildade, falta perdão, falta compaixão, falta amor, falta bondade em sua vida... Falta Deus... Falta TUDO...

Dê-me sua mão. Abra seu coração e repita comigo:

Das profundezas a ti clamo, ó Senhor. / Senhor, escuta a minha voz; sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas. / Se tu, Senhor, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá? / Mas contigo está o perdão, para que sejas temido. / Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra. / A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pela manhã, sim, mais do que os guardas pela manhã. / Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção. / E ele remirá Israel de todas as suas iniquidades. [Salmo 130]