Iogurte com aveia

O velho escritor sentou-se na privada e suspirou profundamente, antecipando já as enormes dificuldades que enfrentaria. Normalmente o mais difícil era vencer os dez primeiros centímetros. (Não, ele nunca tinha medido. Era só uma conjectura, baseada na sensação que a coisa lhe provocava: algo como um torpedo gigante rasgando-o ao meio len-ta-men-te).

As artérias pulsavam, sua cabeça parecia que ia explodir e sua visão era ofuscada pelo pipocar de infinitas estrelas. Já nem sentia mais prazer, como antes, quando se refugiava ali com seus livros preferidos e se deixava levar pela magia da leitura até não sentir mais as pernas.

Ali ninguém o incomodava. “Onde ele está?” “Está no banheiro”. “Ah...”. E ele podia ler em paz, o tempo que fosse, porque estar no banheiro o desobrigava de qualquer coisa. Porque não se pode interromper a defecação de ninguém, por mais lenta que seja. Isso não se faz, é desumano. E ele lia capítulos inteiros de Dostoievski e Tolstoi, contos de Rubem Fonseca e Edgar Allan Poe, enquanto seu intestino era desocupado com ternura e suavidade, sem dor, muito pelo contrário: com uma sensação maravilhosa de liberdade, de prazer: um esvaziamento do ser que ultrapassava em muito os limites do fisiológico, desembaraçando-se também o espírito de suas escórias. Era como se ali, naquela privada, a vida passasse a ter sentido: como se finalmente a Natureza lhe gritasse: “Existir é isso! Devolve-me hoje o que não te serve mais, mas não se esqueça: estou te aguardando...”.

Mas já não era mais assim há muito tempo. E a coisa vinha piorando a cada semana.

Naquele dia ele nem abriu o livro (uma bela edição francesa de “O Conde de Monte-Cristo”, de Dumas), que ficou no chão, enquanto ele gemia de dor.

A visita ao proctologista tinha sido adiada pela terceira vez, na esperança de que a fibra solúvel e o iogurte com aveia que a esposa lhe preparava finalmente fariam efeito. Mas nada. Parecia não ter fibra nem iogurte no mundo que fizesse aquilo ceder mais facilmente.

E naquele dia a sua pressão devia estar muito alta. Sentia uma dor de cabeça horrível que, mesmo quando ele parava para respirar, continuava, como se milhares de agulhas lhe espetassem o crânio por dentro, procurando uma saída.

Até que tudo se apagou.

A esposa encontrou-o caído, de joelhos, com a cabeça no chão e as nádegas viradas para cima, preso entre o armário e a privada. Com a morte, a musculatura anal se contraiu e cortou a ponta daquilo que ele tentava expulsar do corpo a duras penas: uma massa escura e endurecida que, após o corte, rolou pela coxa direita e estacionou na borda da privada.

“Deu tudo certo”, pensou a viúva.

Como ele ultimamente vinha deixando a porta do banheiro destrancada, com medo de passar mal, a mulher (que era enfermeira) pôde entrar, constatar a morte e ligar imediatamente para a funerária, esperando agilizar as coisas para que, no dia seguinte, ao final da tarde, o enterro acontecesse e ela pudesse dar início à tomada de posse da herança milionária do escritor, resultado de quarenta best-sellers traduzidos em quase todas as línguas do mundo.

E enquanto discava o número da funerária, ela já se imaginava em Miami fazendo compras, livre da sovinice do marido, que, em vida, regrava seus hábitos extravagantes com pulso firme, sem a menor piedade.

E o melhor era que tudo tinha se resolvido sem que ninguém desconfiasse de nada, a começar pelo próprio marido, que tomava todos os dias, misturado ao iogurte com aveia que ela lhe preparava, um pó extraído da casca de uma árvore da Amazônia que transformava qualquer tipo de matéria fecal, por mais rala que fosse, em um verdadeiro bloco de concreto. E ele nem sonhava que ela substituía seus comprimidos para pressão por placebos, feitos de farinha e água; nem que uma grave degeneração dos vasos sanguíneos do seu cérebro ameaçava-o de morte iminente, pois ela, aproveitando-se da necessidade que ele tinha de se isolar para terminar o seu último livro e do seu quase completo desconhecimento da terminologia médica, disse-lhe calmamente, quando ele lhe mostrou o resultado do exame: “Acho que não tem nada de errado aqui, meu amor. Não se preocupe, depois você procura o Dr. Gustavo”. E ele se tranquilizou, pois, afinal, sua esposa era enfermeira, devia saber o que estava dizendo.

A equação da morte estava montada: (idade avançada + sedentarismo + obesidade + pressão alta descontrolada + vasos sanguíneos gravemente esclerosados) x força descomunal para expulsar as fezes durante a defecação = derrame cerebral.

Ela ainda teve a sorte dele terminar seu último romance um dia antes: um calhamaço de mais de mil páginas, repleto de aventura e suspense, que a editora aguardava ansiosamente, e que, com a morte do autor, certamente valeria uma fortuna fabulosa.

A jovem viúva ficou milionária, casou-se de novo, teve dois filhos e viveu até os setenta anos, cercada de muito carinho e afeto.

FIM

Fim?

Acho que não.

Para mim, a história dessa assassina, que escapou da justiça dos homens (como tantos outros bandidos por aí, muitas vezes amparados pela própria lei) não termina assim...

Penso que a justiça de Deus é bem diferente da nossa, e que, para todos nós (nesta ou em outras vidas), continua valendo o que diz a Bíblia: "O que o homem semear, isso mesmo colherá". (Gálatas 6:7).

“Tenhamos sempre em mente que todos os delitos que cometemos não desaparecerão no silêncio do túmulo, porque a vida prossegue, além da morte, desdobrando causas e consequências”. (Chico Xavier, no livro “Leis de Amor”, pelo espírito Emmanuel).