Imagem no espelho

A boca seca, os olhos embaçados, não enxergou muita coisa, coçou os olhos com as costas das mãos, conseguiu enxergar melhor, o quarto pequeno, modesto, levantou com as costas doloridas, o colchão estava esburacado, foi até o banheiro, olhou para o espelho por alguns segundos, se assustou com o que viu, um homem com olhos murchos e grandes olheiras, barba por fazer, os dentes amarelos, nariz ganchudo, bochechas magras, cabelos desgrenhados, tão branco que parecia só alma, houve o susto inicial, mas logo se amenizou, perplexidade tomou o lugar, o coração acelerou e diminuiu tão rápido que ele pensou que teria um infarto, colocou a mão na imagem, como que para comprovar o que estava acontecendo, era ele mesmo, ali, refletido, como nunca estivera, sua imagem ali, como tantas pessoas diziam que acontecia, sorriu, mexeu no cabelo, fez caretas, a felicidade não lhe cabia, nunca se vira, era mágico, então parou, e ficou apenas a contemplar a própria imagem, tinha orgulho de si, finalmente conseguira, era alguém, tinha um reflexo, mas a magia acabou assim que a mulher lhe gritou da cozinha que tinha que ir logo trabalhar porque era o primeiro dia, não carecia atrasar logo no primeiro dia, contrariado se foi, mas quando voltou a primeira coisa que fez foi se trancar no banheiro, olhou pra si ali, no espelho, o deslumbramento era incrível, era ele, ali, passou horas a olhar para si mesmo na imagem refletida no espelho, ele não era lindo, mas agora era um ser, tinha um espaço na sociedade, era um homem de verdade, e tinha até mesmo um reflexo, a mulher lhe gritou para que fosse dormir, também não era bom faltar o segundo dia de trabalho, mas tudo que ele queria era olhar para si, para o reflexo, então gritou que já ia, mas não foi, passou a noite consigo mesmo, ali no banheiro pequeno, olhando para a própria imagem. Na manhã seguinte a mulher lhe gritou, queria usar o banheiro, ele praguejando deixou que ela entrasse e saiu por alguns minutos, depois que ela saiu ele voltou a se ver, as olheiras mais roxas, os olhos mais murchos, mas o sorriso vitável, teve que trabalhar naquele dia também, mas assim que voltou correu para o banheiro e ninguém o tirou de lá durante a noite inteira, manteve os olhos em si mesmo, e no outro dia repetiu o que virou rotina, e quando estava para amanhecer a terceira noite, se assustou, sua imagem mexeu, sem que ele a fizesse mexer, então levantou a mão, para comprovar que o reflexo era dele, mas não houve movimento no espelho, seu rosto continuava a olhá-lo, e sorriu de leve para ele, achando graça da cara de perplexidade que surgiu no rosto dele, ele continuou a se mexer tentando fazer o reflexo imitá-lo, mas não houve movimento, até que bateu a hora de trabalhar a mulher lhe gritou, parecia que não se podia faltar nenhum dia no trabalho, mesmo quando uma coisa tão terrível acontecia, ele saiu, mas antes de sair do banheiro olhou para trás para ver o próprio reflexo o encarando com um sorriso no rosto, e quando voltou o reflexo já o estava esperando, com os dentes amarelos à mostra, ele se contrario, de que valia ter o reflexo assim, se era dele e tinha vida própria, gritou com o espelho, que não tinha voz, apenas imagem, então não houve resposta, gritou quantas vezes a garganta agüentou, e quando a fúria lhe subiu os nervos, bateu com as duas mãos na própria imagem, o espelho quebrou, os cacos caíram ao chão, e fizeram barulho, ele olhou para os cacos, o seu rosto ainda sorria, ele sentiu as lágrimas escorrerem, sentiu cheiro de flores, e o sangue escorrendo do pulsos, caiu sobre sua própria imagem, e adormeceu para o eterno se vendo sorrir, um sorriso que não era dele.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 19/08/2011
Reeditado em 29/08/2011
Código do texto: T3169929
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