O que eu nunca vou dizer

_ Eu to bem – Afirmei, começando a ficar irritada pelas repetidas perguntas.

_ Não parece... – Rebateu Ronnie, minha irmã mais nova. Por favor, me diga que vc também notou que ela fez questão de acentuar a ironia e deixar claro que duvida totalmente de mim.

_ Quer saber? Me deixa em paz! Eu to tentando, mas vc tá muito chata hoje. Aff. Não acredita em mim vai perguntar pra o Dr. Júlio.

_ Eu vou mas custa! To indo na tia Lú, quer que eu compre alguma coisa na volta? – Ronnie disse enquanto me dava um beijo babado na bochecha direita. Ela sabe que eu morro de nojo disso. Ela me ama. Saiu. Ufa, a casa é só minha agora. Já posso chorar?

Vou te explicar a situação, vc com essa cara de confuso tá dando dó.

Tenho 20 anos, sempre fui animada, sociável, inteligente, boa filha, irmã implicante, como todas são, boas notas, e planos lindos de estudar estilismo e moda. Não sou mais essa garota com tais predicados.

Numa manhã de sexta-feira, há mais ou menos 3 meses acordei sentindo um dos seios dolorido. Pensei que fosse TPM, já havia sentido muito isso. Fiquei de boa. À noite a coisa tava pior. Até incomodando levantar o braço. Minha mãe disse que se não melhorasse de manhã iríamos ao médico. Fomos. E ae vieram exames e mais exames. Biópsia e tudo mais. Chaaaato. E depois de dias exaustivos, doloridos e infindáveis me disseram que tenho câncer de mama. Quimioterapia não parece estar surtindo o efeito esperado pelo Dr. Júlio. A cada vez que vou lá pra ele reavaliar, a cara dele fica mais preocupada. Ele devia ao menos disfarçar né? Cabelo já era. To ridícula. É sério. Meu rosto definitivamente não foi projetado pra ser usado sem moldura. Fazer o quê? Ainda to viva, dane-se o cabelo. Já chorei o que tinha de chorar por ele.

Então to aqui. Como eu dizia não sou mais a mesma. Eu queria tanto ser como algumas pessoas que parecem tão fortes, acima disso tudo. Dispostas a lutar até o fim. Essa minha atitude de resignação surpreende a todos, inclusive a mim mesma. Vou te confessar algo. Eu não to tão preocupada assim em morrer. Meus planos mais longos são tipo... que filme quero ver no fim de semana. Ou com que roupa irei na próxima sessão de quimio. Odeio planos frustrados, só to economizando minha empolgação em algo que obviamente não vai rolar. A faculdade já era. Terminei com o Yuri. Não queria ele comigo por piedade. Interessante é que ele continua namorando comigo, mesmo depois de eu ter terminado. Me ignorou totalmente. Continua vindo aqui me ver quase todo dia. Compra jujubas pra mim. Me leva no médico. Deixa eu deitar no colo dele. Canta pra mim. E me olha com olhos de apaixonado. Se ta fingindo, faz isso bem. Desconfio que ele me ame mesmo. To horrível e ele continua me chamando de linda. Eu o amo. E por isso não quero mais namorar ele. Ele é muito jovem pra perder alguém que ama. Isso pode fazer um buraco na vida dele. Mas também to sem forças pra brigar de vez, pra ele parar de vir aqui. Acho que se ele parar mesmo eu não aguento. Complicado viu...

Quando ele me pergunta como estou também digo que to bem. É só o que eu tenho dito ultimamente.

Quer saber? Nunca gostei de preocupar ninguém. Sempre fui a mais independente. Esperta. Pronta. E agora to aqui desse jeito. Isso me dá nos nervos! Sei lá, sinto que falta pouco. Ando me sentindo cada vez mais fraca, sem disposição. Antes isso era culpa da quimio. Os dois dias depois que eu voltava da quimio eram os piores, mas melhorava no terceiro dia. Agora não, me sinto mal o tempo todo. Só quero ficar na cama. Não quero ver gente. Não quero ninguém chorando por mim, e isso acontece toda hora. Parentes e amigos vindo até de outras cidades pra me visitar. Isso tudo é muito constrangedor. De nada adianta eu dizer que odeio preocupar as pessoas. Elas continuam preocupadas.

Minha mãe me parte o coração. Ta vivendo em função de mim. Não acho isso justo. Ela tem a vida dela, tem meu pai, tem minha irmã. Poxa vida, não sei nem o que fazer.

Diante disso tudo eu fico com medo do que vai ser da minha família quando eu não estiver mais aqui. Eles estão mais apegados que nunca. A rotina deles sou eu. O almoço tem que ser o melhor pra mim. O filme é o que eu quiser ver. O fim de semana é em casa pra ficar comigo. Tudo eu! Deviam ser um pouquinho egoístas, é o que eu acho. Estamos mais juntos sim, mas e quando eu for? Tenho medo. Não por mim, mas por eles. Não queria causar toda essa dor. Não queria estar sendo o centro das atenções. Não queria arrasar com a vida deles. Mas isso eu nunca disse, nem pretendo. Quando me olham procurando pistas de como estou, sondando meus pensamentos e meu olhar distante, eu encaro e digo que to bem. Eu não to bem coisa nenhuma. Não bastasse a dor física, os mil remédios, a quimio, tem a dor emocional. Tudo isso ta acabando comigo lentamente, como tortura. Eu to desesperada. Ta chegando a hora. As vezes fico encarando o nada e começo a chorar. A depressão ta pegando carona aqui. Nada de planos. Nada de estilismo e moda. Nada da minha lua de mel maravilhosa com o Yuri. Nada de filhos. Nada de futuro. Eu to péssima. Eu quero mesmo é chutar o pau da barraca. Gritar que isso é uma baita injustiça. Quero pichar as paredes irritantemente brancas dos hospitais com cores escuras, medonhas, fúnebres, respondendo como estou. Tenho vontade de rir na cara do Dr. Júlio quando ele me vem com essa de que vou melhorar. Quando alguém me pergunta como eu estou (se ao menos soubessem o quanto isso soa irônico e entediante) eu tenho vontade de dizer a verdade. Morrendo, é como estou. Mas não quero preocupar ninguém, eu forço uma carinha de gente que supera tudo e solto a contragosto – to bem- .

A Ronnie voltou. Trocentas sacolas. Mil e uma coisas que ela supõe que vão me animar. Me abraça como se não nos víssemos há séculos e me pergunta como estou (só tem meia hora que saiu, lembra?), não sei até quando vou aguentar isso. Dessa vez meus olhos involuntariamente se enchem de lagrimas. Ultimamente tenho me sentido uma represa a ponto de transbordar. Mais um pouquinho só e vai tudo por água a baixo, literalmente. Engulo o choro. Só vai piorar tudo. Aproveito que estamos abraçadas, ela não pode me ver. Recomponho-me. Me solto do abraço e digo que to bem. Isso ta ficando cada vez mais doloroso. Deixo a minha irmã na cozinha e vou pra o meu quarto. Umas 3 palavras dela seriam o bastante pra derrubar meu teatro. Deixa eu me preparar pra quando meus pais chegarem, mais visitas chegarem, o Yuri chegar, até o presidente deve vir também né? E advinha? Todos querendo saber como estou. Já que estamos falando da verdade, ok, vamos jogar as cartas na mesa. Eu queria mesmo dizer é que quero viver, mas isso eu nunca vou dizer, satisfeitos?

Jordana Sousa
Enviado por Jordana Sousa em 22/08/2011
Reeditado em 22/08/2011
Código do texto: T3176210