A pescaria

No sonho ele caminhava por uma trilha estreita no meio do mato, sentindo um cheiro forte e agradável de esterco de vaca. Seu avô seguia na frente, com três varas de bambu e uma latinha de iscas, cantando uma velha canção caipira dos seus tempos de caixeiro. Os dois iam pescar bagre no córrego, numa parte funda que quase ninguém conhecia. “O poço é bom, mas tem que ser de noite”, o avô dizia.

Ele acordou do sonho em plena madrugada sentindo uma paz tão grande que seus olhos se encheram de lágrimas. Foi como se todos os instantes de alegria e prazer que ele vivera até então, nos seus trinta e cinco anos, se concentrassem ali, naquele acordar, ouvindo a voz distante do avô, seus passos rápidos sobre as folhas secas, o tilintar das chaves do carro no seu bolso folgado, respirando um cheiro gostoso de mato verde e esterco misturado ao ar frio da noite.

Há muito tempo ele não ouvia a voz do avô: uma voz distante, mas cheia de vida, que em ondas suaves atravessava décadas no espaço da memória até chegar aos seus ouvidos (não do corpo, mas da alma). E os cheiros... Como era bom sentir os cheiros do passado...

A mulher e o filho continuavam dormindo. Ela na cama de casal, ao seu lado, e o garoto numa velha cama de solteiro, próximo à janela.

Desde que o médico anunciara que não havia mais o que fazer (que era só uma questão de tempo), o filho de dez anos começou a sonhar todas as noites com a morte do pai e a acordar assustado, aos prantos. (Via o pai esquelético desaparecendo na impessoalidade branca e luminosa de um quarto de hospital, preso a tubos e fios, sofrendo). Só quando ia para o quarto dos pais ele se acalmava e conseguia dormir. Por isso a cama extra junto à janela...

Mas isso não acontecia mais. Naquela noite o filho tinha se deitado na cama de solteiro, ao lado do pai, para assistir a uma entrevista com um escritor famoso, e adormecera. Ele não tinha mais pesadelos. Em várias conversas com o pai e a mãe ele foi aos poucos entendendo que perder alguém que se ama faz parte da vida, e que no fundo não é uma perda, pois o espírito não morre, só o corpo. “E eu não vou sofrer”, afirmava o pai confiante.

Ao se levantar, com a mente ainda inebriada pelos sons e cheiros do passado, o pai olhou para a esposa e o filho dormindo e agradeceu a Deus por estar com eles naquele instante de paz e felicidade: o filho abraçado ao travesseiro, sereno, e a mulher de barriga para cima, respirando suavemente a brisa fria que entrava pela janela.

A casa na verdade era um sítio, cercado por muros de pedra, tudo muito simples e prático, com um quintal enorme cheio de árvores, flores, frutas, hortaliças e ervas, que a família cuidava com amor e de onde tirava uma parte do seu sustento.

Ao se levantar, sentiu o cheiro doce e exuberante da dama da noite, que lhe lembrava a casa da avó nos tempos de infância, quando a família se reunia para cantar e dançar ao som das cordas e vozes dos tios músicos.

Ajoelhou-se sobre a cama do filho, com cuidado para não acordá-lo, e olhou pensativo para o quintal mergulhado no silêncio escuro da madrugada. Era assim, no meio da noite, que ele sentia a natureza em seu estado mais puro, descansando para morrer e nascer de novo, morrer e renascer... (às vezes um inseto, um morcego ou uma coruja perturbavam o seu sono de mãe cansada, mas sem despertá-la, sem se destacarem dela própria, do seu silêncio grosso, cheio de vida e morte).

Foi para a cozinha e fez um café, que sorveu lentamente, enquanto caminhava descalço pelo quintal, sob a luz fraca de um poste, observando os insetos, as flores, as folhas, as cascas das árvores, a terra fria e seca.

Sentou-se no chão e pegou com as mãos um pouco de terra, que levou aos lábios, para sentir sua textura, seu cheiro.

O café o despertara, ele estava lúcido, com os sentidos aguçados, mas aquilo tudo lhe parecia um sonho. O cheiro de esterco e a voz do avô lhe chegavam novamente do passado, mas com uma presença que ele nunca havia sentido – como se pudesse tocá-los.

Levantou-se devagar, tonto, e abraçou uma árvore à sua frente, um enorme pé de pequi cheio de flores. Colou o ouvido no seu tronco áspero e teve a sensação de ouvir o movimento de alguma coisa lá dentro, um fluxo (de quê?), como um riacho, uma nascente, algo profundo, como um gemido contínuo numa caverna escura e fria.

Deixou-se cair no chão, ao lado da árvore, e ao se esticar, sentiu a terra em movimento, como se ela viva quisesse abraçá-lo, absorvê-lo. O cheiro do café... “Eu quero mais café”, ele dizia, mas não conseguia alcançar a caneca.

Fechou os olhos, respirou fundo por alguns minutos e se levantou num salto, sentindo-se melhor, mais forte. Correu pelo quintal, e o cheiro de esterco era como se estivesse ali. E a voz do avô era como estar de volta àquela pescaria, jogando o anzol no poço fundo daquele córrego, sentindo a fisgada do bagre e o avô sussurrando “cuidado com o ferrão”.

Mas naquela hora, no quintal, junto a uma laranjeira carregada de frutas, o que o avô lhe dizia era “venha comigo”, “venha comigo”, como se estivesse ali, sua voz suave e vibrante ao mesmo tempo.

O sol nascia entre as árvores e ele continuava de pé, parado, recebendo a luz morna da manhã que aos poucos ia clareando tudo ao seu redor: o verde das folhas, os vários tons de marrom da terra, o vermelho, o amarelo, o branco e o roxo das flores...

Foi quando ele viu a esposa e o filho sentados no chão, junto ao pé de pequi. Sentindo-se bem disposto, caminhou na direção deles, mas logo parou, entendendo tudo. “Esta etapa já acabou”, pensou feliz. E ao se voltar para a laranjeira viu o avô, com sua boca desdentada aberta num sorriso cheio de amor e compreensão.

Deitado entre a esposa e o filho havia um corpo sem vida, que ele não precisou ver para ter a certeza de que era o seu.

Sob o olhar alegre e sereno do avô, ele acompanhou tudo sem se aproximar muito: viu como o filho chorava e sorria ao mesmo tempo, acariciando o rosto e os cabelos do pai; como a esposa beijou seus lábios secos e sem vida, derramando sobre eles lágrimas de dor e saudade; como juntos o levaram para a banheira e lhe deram um banho perfumado com as essências das flores que ele mais gostava, ao som de um dos concertos de Brandenburgo, de Bach...

“Eles ficarão bem”, disse-lhe o avô, estendendo-lhe a mão pequena e branca, cheia de sardas.

Ele sorriu. E de repente tinha dez anos e procurava minhocas com uma enxada num barro preto; e puxava as traíras e mandis com a respiração presa de emoção, sentindo seu peso na vara, seu balançar brilhante e molhado sobre a lagoa escura; e olhava para o avô, que sorria, sorria sem dentes, e sem dentes continuava sorrindo ali, ao seu lado, depois de tantos anos...

“Vamos pescar?”. O avô perguntou.

Sim.

Ah Deus, então é isso...

E partiram.

Dedico este conto à memória do meu avô Vicente Batista da Silva, o “Vicente Fabiano” (1922-1995).