APENAS UMA FOTO? (EC)

Era daquelas fotos onde o fotografado olha diretamente para a objetiva da câmera. Parece nos fitar de qualquer ponto em que a olhemos.

Amarelada, repousava, há anos, no porta-retratos da estante.

Apesar de ser em preto e branco, um rosto deslumbrava em meio a uma bela paisagem.

Darcy não sabia quem estava na foto. Não havia nenhuma data ou mensagem no verso. Certa feita, perguntou por perguntar a sua falecida mãe, mas não ligou guardar o nome. Hoje, sequer recordava se era de um familiar ou de algum amigo deixada por lembrança.

Assim, como exatamente não sabia quem era na foto, não sabia exatamente por que não a retirava dali.

Talvez pela beleza da paisagem, talvez... Sabe-se lá... E ela ia ficando.

Talvez porque lhe dava a impressão de tomar conta do apartamento quando ausente. Ou porque algumas vezes – muitas vezes - em sua solidão, pegava-se conversando com ela. Sempre atenta, sem jamais deixar de lhe lançar o olhar um momento sequer, como prestasse muita atenção ao assunto.

À foto contava de seu dia a dia, os probleminhas da repartição, sobre o trânsito, as notícias que ouvira. Perguntava a opinião dela. No fundo, era uma boa companhia, privilégio raro em sua vida. Era ela, provavelmente, seu confessionário e terapeuta.

Sem contato com a família e de poucas amizades, não recebia visitas. Um e outro telefonema, desses corriqueiros.

A empregada semanal pouco via. Dera-lhe cópia da chave. Assim, chegava quando já saíra para trabalhar pela manhã e já se fora quando voltava à tarde. O dinheiro do pagamento ficava preso à base do porta-retratos, como se estivesse sendo vigiado. Se necessário comprar algo, a diarista deixava um bilhete no mesmo lugar.

Sua principal, e talvez única, diversão era assistir à TV. Ao sintonizar uma emissora, indagava à foto se a programação era de seu agrado. Perguntava e sorrindo de maneira provocativa, colocava o controle remoto na estante.

Uma noite adormeceu no sofá e ao acordar no meio da madrugada para desligar o aparelho, teve a impressão que não estava assistindo a programação daquela emissora ao cochilar. Esfregou os olhos, deu boa-noite à foto e foi complementar o descanso na cama de casal, há muitos anos sem companhia.

Essas coisas acontecem.

Numa dessas “Sessões Cult” passava o filme “O Retrato de Dorian Gray”, baseado no livro de Oscar Wilde, na versão original de 1945, em preto e branco. Assustou-se. Pairou no ar aquela sensação de que alguém nos observa. Imediatamente olhou para a foto e sentiu nela algo estranho. Uma fisionomia diferente. Um leve sorriso de Monalisa. Parecia prestar atenção ao filme.

Assistiu ao filme até o final, com um rabo de olho na foto inerte.

Nessa noite teve muita dificuldade para conciliar o sono.

Durante a vigília remoeu o filme. Tentando lembrar quem era a pessoa da foto, tecia comparações entre as situações, mesmo tendo certeza que a foto da sala não era sua. Acalmou-se ao lembrar-se que Dorian Gray não envelhecia e sim o retrato, diferentemente da foto da estante.

Finalmente, o cansaço venceu a insônia e dormiu.

Amanheceu e, por via das dúvidas, observou-se cuidadosamente para verificar se envelhecia. Ao aproximar-se do espelho, sobreveio certa dificuldade de enxergar e teve certeza do envelhecimento.

Conferiu a foto. Igual há tantos anos.

Felizmente, tudo dentro da normalidade.

Num instante, certa preocupação. Estaria imaginando coisas? Continuasse assim, consultaria um médico, disse à foto. Durante o dia matutou a situação.

À noite, passou numa locadora e retirou o mesmo filme.

Prestou mais atenção em eventuais reações da foto que propriamente ao filme.

Nada de anormal.

Tranqüilizou-se.

Sono dos anjos.

Na noite seguinte, assistiu ao filme novamente

Entretanto, intrigava-lhe desconhecer quem estava na foto. Em sua solidão, decidiu investigar quem era aquela pessoa. Procurou fotos de família. Revirou o apartamento até encontrar a caixa guardada no fundo do maleiro.

Calmamente olhou cada uma, comparando traços de fisionomias que pudessem identificar a pessoa do retrato, agora colocado na mesinha da sala, onde havia mais claridade.

Ora achava alguém parecido... No momento seguinte caía na realidade. Não logrou qualquer semelhança com ninguém da família.

Provavelmente, deveria ser um presente... Uma lembrança de alguma amizade mais forte.

Cansou-se e adormeceu, deixando para arrumar a bagunça no dia seguinte.

Ao acordar, assustou-se!

Não se recordava de recolocar a foto na estante.

Pare! Gritou...

Não sabia se gritara para a foto ou para si mesmo, alertando sobre estar com alguma mania.

Sem tirar o olho da foto da estante, juntou as demais e guardou-as, saindo para mais um dia normal.

Não ousou contar a ninguém o que se passava. Sequer ao psiquiatra, que lhe receitou um remedinho natural, para amenizar a ansiedade que não lhe deixava dormir, sem motivo como alegou.

Se melhorou da insônia, não se sabe.

Nem o que se passou entre esse dia e numa manhã da semana seguinte, quando a diarista encontrou o corpo no chão da sala.

Polícia chamada e aparente morte natural. Exceto por um pequeno corte no rosto, provavelmente causado pelo copo quebrado no chão.

À primeira vista, o óbito ocorrera há uns dois dias.

Tudo praticamente em ordem, exceto a TV ligada, com um filme no DVD. Nenhum recado na secretária.

É praxe nessas situações, fazer-se perícia e algumas perguntas.

Entre perplexa e assustada, a diarista alegou não saber quem era a pessoa abraçada a Darcy, brindando cálices de vinho, com sorrisos cúmplices, numa foto da estante. Muito menos, fez qualquer menção de jamais tê-la visto.

Familiares distantes providenciaram o sepultamento, com um mínimo de pessoas. Algumas indagações, sem avanços. Igualmente, desconheciam a pessoa da foto, principal suspeita em caso da ocorrência de crime, hipótese afastada após o laudo necroscópico assegurar o infarto.

Incumbiram-se da devolução do apartamento ao locador, esvaziando o imóvel e conferindo se havia algo de valor.

A mobília foi doada a instituições beneficentes.

Quanto aos corriqueiros bens pessoais, ninguém quis nada.

Sequer uma foto.

------------------------------------------------------------------

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Porta-Retrato

Conheça mais em:

http://encantodasletras.50webs.com/portaretrato.htm

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 09/09/2011
Reeditado em 12/09/2011
Código do texto: T3209346
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.