Retratos, talvez sejam a melhor forma de eternizar momentos. Há quem acredite que aprisionem fragmentos da alma, desconfio que isso tenha um fundo de verdade.

     Mariinha podia contar nos dedos de uma das mãos os retratos de sua infância:
     * O primeiro foi tirado aos dois anos.
     * O segundo aos sete, junto dos três irmãos.
     * O terceiro é o retrato que ela nunca tirou, - não tinha dinheiro no dia - porém teimosa o carrega na memória como se o tivesse ali no porta retrato junto com os outros. A maioria dos estudantes de sua geração tem um retrato como esse: Ao fundo a Bandeira do Brasil, um globo sobre a mesa, o aluno de uniforme sentado e de pé, ao seu lado, sua estimada professora.
     * O quarto retrato remete a um grande momento, e será sobre este dia o texto de hoje.

     O sol de sua vida já passou do meio dia, mas a lembrança daquele dia é nítida,quando aos dez anos de idade, Mariinha fez a primeira comunhão.
     Era uma turma grande, a catequista havia ensinado com devoção, sabiam os Dez Mandamentos na ponta da língua, os sete pecados capitais, as orações, todos sabiam achar capítulos e versículos na Bíblia Sagrada, tudo que era preciso estava pronto, até o vestidinho branco feito com carinho pela mãe.
     O que ressabiava as crianças era a confissão ao pé do padre, que é indispensável para quem vai receber um sacramento. A turma estava se pelando de medo do padre Murilo, que, apesar de conhecido e estimado por todos na cidade e exercer o sacerdócio ali há décadas, tinha fama de bravo.
     Mariinha, muito ansiosa e preocupada, fez até reunião com os colegas:

     — Quê qui a gente vai falá pru padre?
     — Uai, a dona Nabir falô qui pecado é um trem errado qui a gente feiz e qui ta pesano na nossa consciênça... Aí a gente vai lá conta pro padre ele manda nóis arrependê, dá pinitença e nóis tamu prontim pa comungá.
     — Ahh bão, intão é facim, vô iscrevê na mão os pecado pa num isquecê, na hora é só i leno e falano.
     Dentre os “pecados” das crianças estava: Bater no irmão, responder a mãe, brigar com amigos, fazer fofoca, colar nas provas...

     Mariinha tinha algo mais a pesar-lhe a consciência, coisa que não dividiu com os colegas, pensou até em não contar ao padre...
     No dia marcado, por ordem alfabética, ia um a um até o confessionário e de lá se encaminhava para um dos bancos da frente a fim de rezar e cumprir a penitência determinada pelo sacerdote.
     Assustaram-se quando de repente o padre saiu do confessionário e levou o José Joaquim pelos ombros e o colocou de joelhos separado dos outros. Quando viu isso,Mariinha quis desistir e ir embora, logo ouviu seu nome, não teve como escapulir, foi até o confessionário se ajoelhou, conferiu as anotações da mão e estava pronta para a confissão:
     — Quais são seus pecados minha filha?
     — Padre, ieu bati no meu irmão...
     — Hum, O que mais?
     — Rispondi minha mãe, fiquei cum priguiça, falei nome de Deus in vão...
     — Só isso? — Perguntou o padre.
     — Num é só isso não, padre...
     — Fala minha filha.
     — Mais... É qui...
     — Fala.
     — Si ieu falá o sinhor perdoa?
     — Não sou eu quem perdoa, é Deus. — Fale.
     — Ta, ieu vô contá.
     —Conte. Estou ouvindo.
     — Padre... O sinhor sabe qui minha mãe faz doce né?
     — Sei sim, doces muitos bons por sinal. Mas o que tem isso a ver com a confissão?
     —É qui... Teve um dia, ieu tava ino fazê entrega de uma bandeja cheia de pedaço daquele doce de leite cum rapadura, lá ia oiano prus lado e trupiquei numa pedra...
     — Machucou o pé? — Mas isso não é pecado minha filha.
     — Machucá o pé num foi nada... Dexei os doce caí tudo na puêra du chão...
     —Aí você voltou com doces e contou para sua mãe?
     — Não. Padre... Deu medo da mãe ficá braba cumigo, mode quê, num tinha mais leite nem rapadura pa faze mais doce, aí eu catei tudo do chão e tava mei chujo de terra, aí eu peguei e limpei os pedaço de doce no meu vistido, um pur um, nem pareceu que tinha caído na rua, ficô tudo limpim, a sorte foi qui o doce de rapadura é marronzin da cor de terra né? Se fosse de leite...
     O padre ficou em silêncio... Mariinha resolveu perguntar.
     — O senhor vai perduá?
     — Não sou eu quem perdoa já te disse isso... Afinal, para quem você estava levando os doces?
     — Picisa conta isso tamém?
     — Precisa sim, já começou agora termine.
     — Ieu trazia os doce pru sinhôr memo, Sô padre... Foi semana passada, o sinhor si alembra?

     Os colegas viram quando Mariinha foi se ajoelhar ao lado de José Joaquim para cumprir sua penitência, que pela gravidade do pecado, se estenderia pela tarde adentro. Ela nunca soube o pecado do José, era segredo de confissão. O dela acabei de contar aos leitores.


Nota: Apesar de tudo, o dia da Primeira Comunhão foi inesquecível!

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