Sangria desatada

Sozinho em casa, num dia frio e escuro, sentado na privada, aos setenta anos de idade, ele começou a puxar os pêlos do peito e do saco, a puxar e arrancar os pêlos com raiva, uma raiva que explodiu de repente, assim, sem mais, enquanto o cheiro das fezes se espalhava pelo ar, de dentro para fora, um cheiro de repolho podre, de carne podre, e os pêlos caíam na água, no chão, na borda da privada, e ele continuava puxando e arrancando com ferocidade, até que um pequeno vaso arrebentou no seu saco: um vasinho de nada, roxo, que parecia estar preso ao pêlo que ele arrancou do saco murcho e comprido – uma artéria pequena, mas que sangrou, e o sangue começou a escorrer, a pingar, a pingar sem parar na água marrom, que ficou mais escura na parte onde pingava, mais escura de um vermelho vivo de sangue ruim, de sangue azedo, e enquanto pingava ele puxava com mais fúria os pêlos e olhava as unhas dos pés nos chinelos pretos, que ele só usava em casa – chinelos baratos, um deles rachado na frente, sujo – e uma das unhas encravada, trincada, de um marrom pardo escuro, que doía todos os dias dentro do seu sapato caro de ir ao centro, de ir cobrar as dívidas, de ir maquinar contra fulano e beltrano e fofocar como ninguém e matraquear como sou bom, como sou honrado, como sou competente, veja como tenho razão, eu só quero o bem, só quero o que é certo: isso é certo, aquilo é errado, e olha o meu filho, que beleza, ele fala francês e é o melhor executivo da empresa, foi o melhor aluno da universidade, e o sangue escorrendo pelo saco murcho, comprido e velho, os pêlos no chão, na água, pêlos pretos e brancos, quase todos brancos, contrastando com o cabelo pintado, que o fazia sorrir de orgulho e estufar o peito na frente do espelho antes de se enfiar no terno e sair para cobrar e fofocar, matraquear e maquinar, e saía de peito erguido pelas ruas, com sua honra e respeitabilidade de chefe de família bem casado e feliz, tudo certo, do jeito que tinha que ser: lá em casa é assim, comigo é desse jeito: uma felicidade embrulhada em papel de seda e fitas de ouro, o dia seguindo o seu curso, tudo planejado desde o início; e enquanto o sangue pingava sem parar ele pensava no jogo que terminava: rei, peão, rainha, cavalo, torre e bispo deitados na mesma caixa, na mesma caixa de madeira escura, e a tampa, ah a tampa... O fim do jogo se aproximava, e só naquele momento, sentado na privada, arrancando os pêlos do peito e do saco, ele se deu conta disso. Continuar para quê? Onde estava o garotinho que brincava no quintal de casa cheio de alegria e prazer, vivendo o instante? Estava no topo, no ápice, aposentado (mas na ativa, maquinando, maquinando), rico, muito rico, filhos brilhantes, vários imóveis, um casamento respeitável, respeitabilíssimo, com uma fachada construída em pedra maciça impenetrável, por onde não passava nem a luz do sol numa manhã quente de verão: e a vida era como se o sol não brilhasse, mas respeitável e próspera, de dar inveja, era isso que importava; mas o jogo terminava e ele sentia o seu fim, foi um choque, um tremor súbito que o fez soltar o último tufo de pentelhos no chão e esfregar a mão trêmula no peito quase despelado e no saco quase nu, triste (uma tristeza pesada e fria), e ao erguê-la viu o sangue, ah aquele sangue vermelho e quente, escuro, sangue dele, e de repente uma ânsia de beber o próprio sangue lhe tomou o corpo e o espírito, uma fissura, uma fome de seu próprio corpo, de sua fonte de vida, uma vontade incontrolável de buscar nela vestígios do seu eu perdido, de arrancar as cascas, as máscaras, de enfiar as unhas no peito e vasculhar por dentro até encontrar o inacessível eu, onde estava? Onde estava? E sem pensar foi bebendo o sangue, lambendo a mão empapada de vermelho molhado e quente, que voltava ao saco para buscar mais e mais, sangue dele, ácido, com gosto de ferro, de cinza pardo, ferroso, e o saco não parava de pingar, e ele bebendo, de olhos fechados, sentindo, sentindo, e de repente o cheiro podre desapareceu, e a criança voltou gritando nada importa, nada disso importa, e do fundo de seu túmulo Fernando Pessoa gritou Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá tudo sem ti. E ele também gritou, caiu de joelhos e começou a arrancar os cabelos da cabeça, dos cílios, das sobrancelhas, e sentiu sua doença de pele descamando atrás das orelhas e arrancou as cascas, as placas de casca branca e seca, e na cabeça descobriu uma ferida que também descamava e que ele coçou, coçou até sangrar, e o saco pingando no chão, formando uma poça escura no piso branco do banheiro, e sua boca vermelha, vermelha do seu próprio sangue, da sua própria vida quente que pulsava fundo, bem fundo, sem ele saber, perdida por trás das crostas secas, das máscaras duras e frias da respeitabilidade, de tudo que tem que ser, de tudo que é certo; e ele gritou de novo, de joelhos, a boca cuspindo sangue num vômito de libertação, e esfregou no corpo o seu próprio vômito, o seu próprio sangue, e gritou meus filhos, meus filhos, venham até mim, venham aqui e me escutem, não sou o que vocês pensam, roubei, humilhei, menti, oh como menti: muitas dessas pessoas que vocês desprezam só porque eu as culpei de terem me atacado, a mim, o inocente, o bom – essas pessoas não são culpadas nem inocentes – o que vocês sabem é o que eu disse, a minha versão, o que tem que ser, o que deve ser dito para sustentar a imagem pura e boa do pai, do senhor, do respeitável, do marido fiel e honrado, do profissional brilhante, pai dos filhos brilhantes. E a poça de sangue crescia logo abaixo do seu saco, e ele de joelhos gritando perdão, perdão, as mãos levantadas em súplica, e uma nova ânsia de vômito lhe tomava o estômago em espasmos de dor, os músculos se contraindo, apertando, apertando: espasmos que expeliram uma água rala, vermelha e fétida, de um fedor ardente e seco; e de repente ele se jogou no chão, deitado, com as mãos no rosto, banhado em sangue, fezes e vômito, imaginando-se na frente do espelho, todo importante, e não havia nada ali, era um espelho vazio, nada, ele não estava ali. E se você chegou até aqui e está com raiva e nojo de mim, eu não me importo. Não me importo mesmo. Eu não escrevo para que gostem de mim, nem para ser publicado, nem para aparecer, não quero nada disso (se não me citarem nos anais e nas coletâneas, paciência), quero só escrever, escrever... E agora vou reler o texto, vou voltar para pontuá-lo, faltam vírgulas, pontos, pausas, mas não posso exagerar, pois estou sangrando e esse sangrar não tem pausa, ele não pára, é desatado. E a poça aumentou ainda mais e ele desmaiou, desmaiou de exaustão e dor, quase sem fôlego de tanto gritar, quase sem vida, mas limpo, purificado... Foi salvo pelo vizinho, que o levou a um hospital, onde os filhos e a esposa o encontraram vivo e limpo, mas diferente: um outro homem... Preparado para partir. As peças já estavam na caixa... O jogo acabou.