DIFÍCIL VIDA FÁCIL

Duas da manhã. Ela só sai às seis horas. Naquela noite teve oportunidade de contemplar um pouco a lua cheia que lhe fazia uma visita pela janela, por entre as cortinas pesadas daquele quarto, naquele hotel. Era uma noite fria e em noites assim o fluxo de homens diminui bastante. Além do mais hoje é terça-feira, uma noite morta, visto que muitos preferem ficar em casa mesmo, talvez curtindo decepções e rotinas estressantes, esposas enfadonhas e filhos que dão muito trabalho. Ao menos são essas as principais desculpas daqueles que frequentam aquele espaço, numa tentativa de não serem vistos como traidores de esposas ou de homens que precisam de motivos para procurar seus serviços. Para ela pouco importa.

O cenário é medonho, sem beleza alguma ou sem nada que lembre um espaço de trabalho comum, embora o seja. Um prédio velho, janelas gastas pelo tempo e paredes descascadas, indicando anos a fio sem reforma alguma. Uma escadaria que se julga discreta leva ao andar de cima, onde tudo acontece. Uma entrada simples, sem recepcionista, um espaço aberto a todos que ali queiram adentrar. E são muitos os frequentadores. Fim de tarde é quando movimento aumenta. É sempre tudo muito rápido, uma passadinha após o dia de trabalho para um relaxamento vazio e desprovido de qualquer sentimento. Dentro do quarto uma cama simples de casal, com lençóis absolutamente comuns. Compondo o espaço um armário com uma porta quebrada, que não fecha mais direito, de onde discretamente podem-se observar as peças de roupas usadas na saída daquele local. Uma luz fraca quase ilumina o lugar sempre de janelas fechadas e cheirando a mofo. Uma música ambiente toca nos corredores, falando de dores de amor, de homens traídos num ritmo popular e sem muitos adornos musicais. Um barulho apenas, talvez para quebrar o silêncio, compondo assim o momento primoroso juntamente com a parca luz que não permite vislumbrar perfeitamente o rosto de quem ali se encontra. É um encontro pouco visível e o mais silencioso possível. Melhor assim.

Giliane chega pontualmente às quatro da tarde, exceto na segunda-feira, seu dia de folga. Ela não é uma mulher feia, mal cuidada talvez. É loira e tem os cabelos compridos, pouco tratados, mas sempre limpos. É alta, tipo mulherão, tem coxas grossas e lábios carnudos. Os olhos ficam camuflados na pesada maquiagem, talvez para não lhe revelar os sentimentos de janela da alma. Cumprimenta suas colegas (algumas moram ali mesmo) e começa sua jornada diária. Como as companheiras, fica seminua na cama, geralmente lendo algo para passar o tempo ou vendo um DVD qualquer de portas abertas. São vários quartos e várias “ofertas”, como numa vitrine de produtos. Por aqueles corredores circulam homens à procura de algo, geralmente indefinido. Tal como numa exposição, analisa cada “artigo” para fazer sua escolha. Quando entra um cliente, combina-se o preço previamente e ele executa o ato puro e simples e se vai em minutos. Fica o dinheiro apenas. Lembrança alguma é deixada para trás.

Ela possui três filhos e um ex marido. O caminhoneiro Eduardo a deixou faz cinco anos, sem dinheiro, sem casa, sem bem algum. Deixou os filhos para que ela deles cuidasse. Um inclusive já esta iniciando faculdade e ignora ainda hoje o trabalho noturno da mãe. Ela sai toda noite para cuidar de uma idosa solitária, diz. Os filhos pouco importam com ela e sentem falta do pai. Não questionam, e nesse caso talvez seja a melhor parte. É melhor assim. É com o seu trabalho que sustenta os filhos, e pretende, como todas, sair dali assim que tudo estiver em ordem. Durante o dia, Giliane é faxineira de um banco público, serviço terceirizado e recebe pouco mais de um salário mínimo. Não tem pai ou mãe, apenas uma tia distante que a visita uma vez ao ano, para colocar defeitos em sua vida e lhe dar cansativas lições de moral.

Ela contempla a lua de sua janela. Este dia esta mais calmo e o movimento acabou um pouco antes da meia noite. Muitas de suas companheiras já dormem. Ela relembra Dilermando enquanto contempla aquela rua de grande movimento ao dia, agora com o sinal amarelo piscando, deixando para os carros a pista completamente livre. Os poucos que por ali passam se vão a altíssima velocidade noite adentro. Sua vida esta sempre em sinal vermelho ou amarelo. Ele foi um cliente apenas. Entrou num dia chuvoso, a escolheu e a amou. Silenciosamente pagou o preço e se foi. Voltou dezesseis vezes e a escolhia sempre. Ela começou a amá-lo. Esse é o pior crime de uma profissional do sexo. Dilermando fez juras na terceira vez e a prometeu tirá-la daquele lugar, juras essas que ele refazia sempre em cada visita. As visitas se davam quase três vezes ao mês. Isso já faz sete meses e ele nunca mais apareceu. Deixou para trás um cartão de visita da última vez que esteve com ela. Prometia voltar da próxima vez para buscá-la. Segundo o cartão, era consultor empresarial e deixava um telefone de contato. Ele sempre elegante e bem vestido, de terno, perfumado, voz suave, conquistou o inocente coração de Giliane, já nos seus trinta e sete anos, de jovem aparência ainda, apesar dos sofrimentos vários. Aquele número nunca chamou ninguém. Ninguém nunca atendia as ligações dela.

Naquela melancolia de mulher abandonada e entregue à própria sorte, contempla as estrelas que brilham na escuridão da noite e chora compulsivamente. Nem sabe ao certo porque chora, tantos os motivos. Os filhos indiferentes, os pais falecidos e a saudade da bondade de sua mãe, as juras de Dilermando, a difícil vida fácil que ela leva cotidianamente. Pensa no futuro de Jéssica, de quinze anos apenas, preocupa-se com a saúde de Aurélio de doze anos e meio apenas, abandonado pelo pai ainda recém nascido, que sofre de doença degenerativa... Ah o coração dessa mulher pulsa forte, ainda valente, guerreira, intrépida se permite um espaço para sonhar.

Alguém bate de repente em sua porta. Um cliente, pensa ela. Mira-se no espelho que tantos rostos já refletiram, que viram tantas lágrimas e sorrisos mortos e que agora reflete as suas. Retoca a maquiagem sempre pensando ser ele de volta. Abre e vem a surpresa: um bêbado disposto a pagar bem. Ela enfrenta mais esse. É só mais um e logo passa. Antes porém fecha a janela do quarto, normas da casa. A cidade é impedida de ver aquela mulher naquela cama com os sofrimentos e dores que carrega. Talvez por isso se feche as janelas. Também ninguém a quer ver, ninguém a quer enxergar, ninguém quer se importar com isso. A janela fechada e assim observada da rua demonstra o foco de visão da sociedade sobre quem assim leva a vida: que fique escondida e entregue a si mesma. Que seja assim.

Enquanto isso Giliane atende seu cliente com a mesma presteza de sempre e com a mesma maquinal cordialidade da casa, o mesmo sorriso ensaiado e treinado vezes tantas a rostos vários. E segue sua sina de mulher segredo, de mulher dupla, de mulher marginalizada, excluída, desenxergada, invisível, esquecida, incompreendida... e adjetivos infinitos que preencheriam páginas e páginas de um livro inútil. Tudo isso aos nossos olhos imóveis e nossas bocas mudas, nossos braços inertes e nossas consciências sempre dissimuladas. Não é comigo, não me importo. Cada um que cuide de si, cada um escolhe o que quer, cada um vive como deseja. Pensar assim é o melhor ópio para aquilo que negamos existir. Hipócrita sociedade.

Três e vinte da manhã. O bêbado paga a conta e vai embora. Giliane deitada na cama contempla sua vida. Longe dali, acontece uma grande festa com a presença de muitas pessoas importantes. Dilermando e Soraia celebraram os trinta anos de casamento. Na igreja e tudo.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 19/09/2011
Reeditado em 19/09/2011
Código do texto: T3229046
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.