Divagações (frívolas) de quem não sabe existir

Gostaria de saber, no mínimo, o exato momento de minha morte. Pelo menos o dia. As coisas ficariam um pouco menos angustiosas. Poderia viver um pouco mais com tranqüilidade. Agora, por exemplo, meu coração acelera subitamente, minha respiração fica opressa, talvez seja pouco, mas é o suficiente para que minha consciência sofra um certo tipo de abalo:ela não sabe se esse instante, quando sofro com os sintomas da hipocondria, foi vivido realmente em sua medida exata. Se eu souber exatamente quantos instantes como esse eu ainda terei poderei mensurá-lo de acordo com a proporção e as expectativas de minha vida. Se o instante condiz com tudo que imagino pra mim, se é dor grave, prazer ameno ou monotonia. Enfim, saberei a fração exímia que ele corresponde ao todo. Poderia classificá-lo. Até poderia fazer uma escala de instantes, dar notas a eles. Esse por exemplo: 7,5: aprovado. Mas talvez o que mais me agradaria seria a possibilidade de construí-lo de acordo com os limites de minha finitude. Talvez a grande agonia seja essa: não sabemos até que ponto podemos ir, e se, onde estamos, é realmente significativo, se o presente é alguma forma de apoteose de meu eu ou se é lixo descartável de uma existência que ainda promete momentos de felicidade inimagináveis. Nunca podemos saber - exceto nesses casos em que a velhice ultrapassa a própria existência, nos quais, os homens, já impossibilitados, só podem existir através de sua memória, resgatando aqueles momentos valiosos de sua vida já pré-acabada – se num determinado presente chegamos ao ápice dos nossos pensamentos e sentimentos. Se, no tempo que nos foi concebido ser, soubemos realmente sugar da vida o necessário e, inclusive, o extraordinário. Tentamos fugir do equívoco. Porque, às vezes, totalmente enganados, retemos dela o supérfluo e achamos que é tudo. Outras vezes, pegamos dela o banal e é isso que nos contenta, bem tolamente.

Digo isso porque se soubesse as horas que me correspondem no espaço da eternidade poderia me projetar nelas corretamente. E se soubesse ainda, no devido instante em que possui uma espécie de consciência, o meu limite, talvez a minha vida não estivesse imersa nesse mar de desespero, nessa causa possivelmente errante a que me dedico,nessa hesitação perpétua entre o hedonismo sagrado e o compromisso profano. Suponhamos que agora eu queira fazer uma obra de arte: tudo é incerteza. Não sei se poderei me dedicar a ela com validez. Se me falassem...olha...você irá viver o tempo suficiente para ela...pronto: a minha obra estaria concluída. E mais, entraria nela com forças que talvez me faltassem, mas que, no entanto, buscaria com todo o gosto de um ofício de liberdade. Eis inteiros os momentos de minha força, eis inteiros os momentos de minha frivolidade. Dado o prazo de entrega dos projetos, dado o prazo de entrega da vida para os braços da morte, tudo estaria ordenado em minha cabeça.

Mas agora,como isso não é possível, não sei de nada. Não sei o que fazer de mim. Quantos dias ainda me sobram? Cinco? Dez? Nesses casos terei de consumir a vida até o limiar do exagero trágico. Ou, então, posso esperá-la sublimemente em minha cama, como um homem que espera cansado o sono, revisionando com uma certa dose de pesar e de nostalgia o que foi erro ou acerto na minha vida curta e inútil. Porque se me sobram dez dias, e estou com trinta anos, confesso que desperdicei tudo. E, até agora, e até nunca, não fiz nada digno de nota. Nada que tenha coragem e força para ultrapassar meu corpo rumo a outros corpos presentes e futuros. E se eu possuir – sejamos delicados e esperançosos - mais uns trinta anos? Que alegria bem vinda! Isso agora seria um convite pomposo para a quase eternidade, um convite estupendo ao desleixo do meu presente. Teria talvez tudo, tudo, com essa agradável notícia. E minha vida não seria mais essa impossibilidade...Talvez tenhamos que colocar em nosso espírito essa ilusão para enfim criarmos coragem para agir. Colocarmos em nós um tempo médio que nos dê a pressão da finitude para ser e que, concomitantemente, nos dê também a impressão de infinito, para também nos aliviarmos e, às vezes, não querer ser.

Talvez – se Ele existir realmente – poderíamos pedir a Deus para nos alertar de nosso tempo. Convenhamos, seria tudo menos errante. Mas não penso somente em minha agonia, com a incerteza da morte,de não saber como existir. Penso também naqueles que nem ao menos tiveram tempo de possuir essa incerteza, naqueles serem que mal nasceram e que já se vêem impedidos de pensar, de sentir, de andar, de gozar, de serem, ao menos um esboço deles mesmo. Penso naqueles que morrem sem viver. Para que, colocar no mundo seres que não terão nunca este mundo? Porque? Não é um pouco injusto? Porque, em contrapartida, penso naqueles que também existiram demais e que agora só sentem o gosto do mundo com os olhos ou a consciência. Penso naqueles que não conseguem mais existir porque tudo para eles já foi de alguma forma existido. Também não é um pouco injusto dar aos homens mais vida do que a própria vida? A vida torna-se um pouco injusta para cada um quando temos a idéia de alguma totalidade.

Talvez todos devessem morrer com o mesmo período de gozo e de dor. Aquele tempo médio. Talvez uns 70. Variando apenas o dia de cada um. Talvez a vida e morte se transformassem apenas numa relação de adequação, de espera, força e consentimento. A vida seria mais complacente, mas não menos hirta de dificuldades. Se houver Deus, aqueles que acreditam em algum, poderiam pedir em suas preces isso: um tempo médio. Eu não posso pedir nada. Porque tudo em mim é incerteza.

Mas se não há Deus, a morte está corretíssima em ser como é: injusta, casual e perplexa. E nós no meio dela, tentando adequar algum pensamento, alguma lógica tola e inútil que nunca suprirá a força desse mistério.

E enquanto nada se conclui, e não posso mesmo concluir nada mesmo, fico aqui a divagar sobre as coisas com o sabor das palavras, a decidir se me entrego aos instantes ou a eternidade...pensando que talvez se entregar a um seja, inexplicavelmente, lançar-se também ao outro...

...E essas são as minhas divagações frívolas...de quem não sabe existir...

de Castro
Enviado por de Castro em 20/12/2006
Código do texto: T323507