CORAÇÃO DE JESUS

Naquela noite, parecia não haver jornais o suficiente para aquecer seus corpos. Apesar de tantas mazelas reais e venturas fingidas, as notícias do dia não foram capazes de abreviar o frio que triturava seus ossos. Nem mesmo a quentura das páginas policiais ou o caderno de fofocas com seus calores frívolos apaziguaram o sopro gelado do cotidiano infortúnio que os açoitava.

Pacote, febril e meio convulsivo, havia mijado o papelão sobre o qual dormia ao lado de Xileno, seu cúmplice de abandono que o fazia esquecer-se da fome e da miséria, o protegia da fúria patológica dos mauricinhos, das arbitrariedades da guarda municipal. Como a substância da cola de sapateiro que lhe rendera a triste alcunha, Xileno era o único indigente da Praça Coração de Jesus capaz de entorpecer as noites insones de Pacote, que se tornavam mais inquietas e compridas a cada dia.

Em uma destas madrugadas de segunda-feira onde o sopão dos Anjos da Noite é distribuído para os moradores de rua no Centro de Fortaleza, Xileno conheceu um médico voluntário e pediu que este desse uma olhada em seu companheiro de descaso. A febre não está tão alta, se ele não melhorar até a próxima segunda, rapaz, avise-me que eu levarei teu amigo à minha clínica, lá poderei tratá-lo com maior comodidade. Mas o Doutor Filantropia usava suas insígnias de borla e capelo somente na hora de falar bonito, com sua boca perfumada e cheia de dentes, o sorriso desenxabido e falsamente luminoso que – de tão branco – ofendia. Nem mesmo para servir uma tigela de sopa quente aos infelizes sem-teto com o egoísta propósito de sentir-se o mais virtuoso dos filantropos, o médico que salvaria Pacote de sua lastimável doença jamais retornou à Coração de Jesus. Restou ao menino permanecer daquele jeito, amparado apenas pelo abraço e odor benzenado do afetuoso descuidista que o amava de maneira pungente, apesar de ambos duvidarem de que aquilo que sentiam um pelo outro fosse realmente amor. Não pode sair nada de bom de dois bandido que nem nóis, disse Pacote em uma destas noites intermináveis, fedendo a merda, o calção cagado, a chorar e a fugir dos cafunés de Xileno, encolhido pela vergonha de ter suas necessidades asseadas pela mão de seu amigo, amante e irmão.

Não tardou para que a milícia contratada a fim de manter ambulantes e mendigos distantes das lojas do Centro percebesse a mudança no comportamento de Xileno, sua fisionomia cheirada de benzeno em busca de sacolas, relógios, carteiras e celulares incautos esboçava um novo olhar, não lembrava em nada o costumeiro ladrãozinho contador de anedotas sujas que ria do susto que dava nas velhas ao arrancar-lhes a bolsa cheia de moedas e balas de gengibre – Pacote adorava aquelas balas. Sabiam os jagunços do comércio de Fortaleza que aqueles olhos verdes e viciados em pouco tempo se voltariam para as vitrines, esperavam eles que isto acontecesse o quanto antes, bastava-lhes apenas um banal motivo para espancar até a morte um daqueles moleques invisíveis, exterminá-los era um dos maiores contentamentos que possuíam em suas vidas de paus-mandados, de caceteiros.

Me dá um remédio aí pra dor de febre e essa camisola de dentista, ordenou Xileno ao farmacêutico enquanto apontava-lhe a arma nitidamente de brinquedo. Todavia, por não estar lidando com um homem, mas com uma besta, uma fera, o homem sequer pensou em reagir, retirou seu jaleco e entregou-o ao desorientado malfeitor, também uma cartela de Tylenol e um frasco de Nevralgina. Xileno vestiu-se com o jaleco e guardou os medicamentos em um dos bolsos, mirou-se nas paredes espelhadas da farmácia e imaginou-se o médico que o destino desde seu nascimento proibira que ele o fosse, sorriu, achou-se bonito, queria sua mãe ali para vê-lo trajado do mesmo modo como deveria se vestir em sua clínica o mentiroso Doutor Filantropia, aquele cheio da nota metido a santo que não cuidou do meu Pacote.

O enfermo parceiro de Xileno sobressaltou-se de repente, pare, minha mãe, minha mãe, pare, chorava, enquanto os outros moradores de rua o xingavam de veado e mandavam que ele calasse a boca. Os cheiros da cozinha de sua casa, o jardim improvisado em baldes e latas de tinta, sua irmã a pegar às escondidas seus gizes de cera, as investidas brutais de sua mãe sádica, o traidor silêncio de seu pai omisso. Sensações de uma outra vida o invadiram todas de uma vez, às enxurradas, aos turbilhões, como se a febre houvesse aberto uma brecha por onde a indesejada saudade passava de tropel. Protegeu a cabeça contra mais um golpe de pau da mão materna que, em seu delírio, estava bem ali a julgá-lo, seu cula, seu bichinha, tu vai pro inferno, desgraçado, mas só depois que eu te matar. Me dá um cheiro, um cheiro, Xileno, cheiro, Xileno, cheiro... a cola, a cola, descola o cheiro da cola, Xileno... minha mãe, não... ela, não... não, mãe... a cola... a cola.

Xileno me ama. Foi a última coisa em que pensou Pacote antes de parar de respirar... Após ouvir um tiro para os lados da Farmácia do Patrocínio.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 28/09/2011
Código do texto: T3245900
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