O VESTIBULAR

Tentando desviar o pensamento do resultado que eu esperava com ansiedade e medo, tentava concentrava-me na preparação de uma atividade, para o trabalho de sala de aula. Sem conseguir a concentração desejada; riscava distraidamente um papel, quando ouvi alguém dizer: Carminda, telefone para você, lá na diretoria. Sem vontade de sair dali, Levantei-me devagar. Ao atender o telefone, ouvi uma voz calma e inconfundível dizendo: Vou passar aí para raspar a cabeça de alguém que passou no vestibular. Era meu irmão, disse-me que tinha acabado de ler o meu nome no jornal, leu novamente para eu ouvir: Carminda Nogueira dos Santos, aprovada em décimo quarto lugar para o Curso de Geografia na Universidade Federal de Rondônia....Gritei: Mesmo! Mano? estás falando sério? Rindo ele respondeu: sim é verdade, parabéns...teremos agora uma universitária na família; - obrigado mano, muito obrigado...desliguei o telefone e chorei...era quase irreal...não acreditava; não que estivesse subestimando minha capacidade, não era isso, sabia que tinha ido bem nas provas e estava segura dos meus conhecimentos. Mas sabia também, que a maioria das pessoas que faziam vestibulares, vinham de escolas particulares ou freqüentavam cursinhos; com certeza a probabilidade dessas pessoas serem aprovados era maior. No fundo do meu subconsciente, tinha esperança de ser aprovada, porém, o número de vaga era tão pouco, para tanta gente; somente quarenta vagas, e se não me engano, haviam mais de trezentos escritos para o curso que escolhi. Com os olhos ainda embaçados pelas lágrimas que surgiam em abundância, recordei: Aos doze anos, trabalhando de doméstica em uma casa de família, onde o dia todo de trabalho, o pensamento era quase único ( preciso estudar muito, quero mudar de vida e não precisar mais fazer este tipo serviço para ninguém). Não gostava nenhum pouco do que fazia.

Lembrei-me, que comentei certa vez com a filha da patroa, que seria uma professora formada com faculdade ( como diziam na época para professores que tinham nível superior). A menina comentou com a mãe a nossa conversa, e um dia enquanto eu passava cera na casa sentada no chão, ouvi minha patroa falando com a vizinha que se encontrava na varanda da casa: imagine você vizinha, que a minha empregada, coitada, fica sonhando em ser professora formada...tenho pena dela, se a coitadinha soubesse que filha de lavadeira não tem a menor chance de passar em vestibular...riram, ouvi a vizinha dizendo: não é pecado e nem custa nada sonhar...riram novamente. Aquelas palavras feriram fundo, meu tímido sonho. Saí devagarzinho, e não deixei elas perceberem que ouvi a conversa, entrei no banheiro e chorei, chorei muito, tinha apenas doze anos, mas disse para mim mesma, com todas as minhas forças: farei uma faculdade!...fiquei algum tempo no banheiro chorando e repetindo sem parar: farei uma faculdade, farei uma faculdade... E por muito tempo repeti essa frase enquanto trabalhava. Ainda envolvida em meus pensamentos, recordei quando terminei o chamado segundo grau na época, com habilitação em Magistério, pronta para lecionar para crianças de 1ª a 4ª série, já estava contente...mas não podia parar por aí, ainda não havia atingido meu objetivo. Já tinha um filho, e as dificuldades eram muitas; mas o pensamento de fazer um vestibular não saia da cabeça. Fiz minha inscrição no primeiro que apareceu. No dia “D”, fiz as provas, totalmente sem segurança, não acertei preencher o tal gabarito, nunca tinha visto um até aquele momento...resultado: não passei...fiquei muito triste, lembrei da minha patroa...chorei; mas enxugando as lágrimas, disse baixinho: ela está errada, vou sim fazer uma faculdade.

Depois de um ano, já trabalhava em uma escola como professora, com uma turma de 3ªsérie, me identifiquei com o trabalho, estava amando o que fazia, parte do meu tímido sonho começava a realizar-se. Sem esquecer o meu objetivo, ficava sempre pedindo informação sobre a data do vestibular da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

O tempo foi passando, esqueci um pouco do vestibular, quase já não buscava informações, as atividades do dia a dia, faziam com que eu não me preocupasse muito com esse assunto.

Um certo dia, uma amiga de trabalho perguntou-me: Você vai fazer o vestibular este ano? As inscrições serão encerradas na sexta-feira. Fiquei eufórica, respondi: claro que vou, e neste eu vou passar, você vai ver. Este ano será em duas etapas, disse minha amiga; e continuou: A primeira etapa vai eliminar a maioria dos inscritos. Confesso que me assustei, mas não desisti. Em casa conversei com meu marido, e juntos tentamos quebrar mais uma barreira, a falta de dinheiro para a bendita inscrição. Tentamos emprestar de parentes, amigos, vizinhos...sem sucesso! Fingi não está triste, pensei (a vida continua, muitos vestibulares virão pela frente).

Sexta-feira pela manhã quando chequei à escola, minha amiga Aninha foi me perguntando: fez a inscrição para o vestibular? Quase chorei...mas entre risos forçados disse: não amiga, faltou dinheiro, mas não tem problema, acho até que com essa invenção de duas etapas eu não iria passar mesmo, é melhor esperar outro...ficamos caladas e o trabalho continuou.

Neste dia fui para casa mais cedo, por que faltou água na escola. Em casa tentei esquecer o assunto, até porque já eram onze horas, e o banco fecharia às quatorze horas, não adiantava mais fazer outras tentativas de empréstimos. De repente ouvi bater palmas na frente da casa, ao abrir a porta vi que era Valdo, esposo de Aninha; me preocupei e perguntei: aconteceu alguma coisa com Ana? – não, vim apenas trazer o dinheiro para você fazer sua inscrição no vestibular; Ana me intimou a conseguir este dinheiro para você. Prendi o choro, agradeci, olhei no relógio, estava se aproximando das treze horas. Não tive tempo para pensar, peguei minha bolsa e sai quase correndo; pedi uma carona de um vizinho que estava saindo em seu caminhão de frete e ele me deixou em um ponto de ônibus; logo passou um ônibus, entrei e não sentei, estava muito ansiosa. Ao chegar na UNIR peguei o comprovante de taxa de inscrição e às trezes e quarenta, estava no banco pagando a referida taxa. De volta à UNIR para efetuar de fato a inscrição, meu coração estava acelerado, com medo de não ter chegado a tempo. Optei pelo curso de Geografia, e confirmei minha participação no esperado vestibular.

Leve como uma pena, aliviada e agradecendo a Deus e minha amiga Aninha, voltei para casa. Daí pra frente, foi só ansiedade, aguardando o grande dia.

Realmente o vestibular foi dividido em duas etapas. No dia da 1ª prova, estava tensa e feliz; cheguei uma hora antes. Enquanto esperava o início, sorria por dentro, e dizia baixinho(ela estava errada, vou passar no vestibular, vou fazer uma faculdade, vou ser uma professora formada...). Começou a prova, respirei fundo e esqueci tudo ao redor, entrei em um mundo só meu. Ocorreu tudo bem, achei fácil, e voltei para casa muito segura do que fiz, e já ansiosa pelo resultado.

Na escola que eu trabalhava, todos torciam por mim. Uma certa manhã ao chegar no trabalho, uma colega falou-me: já saiu o resultado do vestibular, você já viu? As listas estão expostas lá na UNIR. Neste dia trabalhei sem concentração. Quando sai da escola, fui direto para a UNIR, meu coração estava acelerado. De longe avistei várias pessoas no local; estava cada vez mais nervosa; me aproximei das listas e olhei cada uma rapidamente, a ansiedade era tanta que não prestei atenção que elas estavam separadas por cursos. De repente li: aprovados para o curso de Geografia, e o quinto nome da lista era o meu, estava por ordem alfabética. Faltou o ar, queria gritar...sorria sem tirar os olhos da lista...passei! falei para as pessoas que estavam próximas...sai falando baixinho (passei, passei, passei...ela estava errada, passei). Meio abobalhada, cheguei no meio da escadaria da UNIR, onde estava descendo, voltei e olhei a lista de novo para ter certeza. Fui...liguei para meu irmão e espalhei para os familiares e amigos a minha alegria...senti vontade de encontrar minha patroa e dizer: você estava errada; filha de lavadeira também passa no vestibular...passei.

No dia seguinte, Aninha já sabia, me abraçou e disse: Você merece! Agora é só se preparar para a outra etapa. Calei e voltei à realidade, é mesmo, ainda tem mais uma etapa. Você passa, disse Aninha, não tenho dúvida. Sorrindo entre lágrimas disse: é. Passo sim.

Naquele dia acordei cedo, mas estava chovendo muito. Preocupei-me, o ponto de ônibus era bem distante de minha casa; quase chorando esperava a chuva passar, e nada; as sete e trinta ela diminuiu, corri para o ponto de ônibus. Não passava nenhum ônibus, estava desesperada; não podia perder a prova da segunda etapa; o horário marcado era às oito horas. Andava de um lado para outro com lágrimas nos olhos, ruía as unhas e apertava os lábios...passou um ônibus...fui. Ao chegar na escola onde faria a prova, estava toda molhada, vi o portão fechado, entrei em pânico; bati com força no portão; ouvi apenas uma voz dizer: já passou da hora de entrar! Desabei...chorando falei: Por favor moço, deixa eu entrar, não posso perder a prova, moro longe, está chovendo muito...por favor moço, por favor...chorando baixinho permaneci no portão com a chuva caindo sobre mim...O portão abriu, e o moço disse: - Entra, se você tiver sorte de o fiscal deixar você entrar na sala, barabéns! Corri para sala. Ao chegar na porta todos olharam para mim...não falei nada, só as lágrimas rolavam dos meus olhos. O fiscal olhou-me e disse calmamente: - entra rápido, vou quebrar o teu galho. Sorri entre lágrimas, agradeci e entrei.

Toda molhada e com os olhos vermelhos de chorar, eu devia está muito engraçada.

Sentei-me, respirei fundo, tentando me secar com as mãos, dizia baixinho (obrigada Deus, obrigada).

Uma moça que estava sentada na cadeira que ficava atrás de mim, estendeu-me uma toalhinha de rosto dizendo: precisa secar-se para não molhar a prova; passei rapidamente a toalha no rosto, nos braços, nas mãos e devolvi agradecendo.

Desligando-me dos acontecimentos anteriores, iniciei a prova; cada questão respondida, sentia-me mais perto da vitória, estava segura das minhas respostas. Porém, no preenchimento do gabarito, ele estava molhado, quase rasgando. Meu coração quase parou; Isso não pode acontecer, disse baixinho; esperei um pouco para que ele secasse, e com todo cuidado, fui preenchendo-o. Ao entregá-lo ao fiscal, pedi desculpa por ter molhado; ele deixou um pouco afastado dos outros para terminar de secar, sorriu para mim e me desejou boa sorte. Fui.

Chegou o dia do resultado, fiquei com medo de saber, não procurei a lista, fui trabalhar nervosa. Aninha lembrou-me que era o dia do resultado, fiquei calada, e balancei a cabeça afirmativa. Estava com medo, e procurava conformar meu ego dizendo baixinho (tudo bem, se eu não passar, faço outro...este é apenas o segundo que faço, tenho muito tempo...). Procurei afastar o pensamento, quando alguém me chamou dizendo: Carminda, telefone para você lá na diretoria. Sem entusiasmo, aproximei-me do telefone e falei devagar: sim, Carminda, quem quer falar comigo? Ao desligar o telefone, alguns colegas viram eu chorando; pedi um minutinho para ficar sozinha e depois contei a novidade...Daí pra frente foi só felicidade. A escola estava em festa, todos estavam felizes por mim, principalmente, quem sabia minha história. Aninha parecia está mais feliz que eu, não cansava de repetir: você merece, você merece...recebi abraços e beijinhos...sem palavras para explicar emoções.

Os momentos que se sucederam é difícil descrever...compartilhei minha alegria com minha família, amigos e meu grande amigo, amor, e companheiro de jornada...meu maridão...felicidade total...mais uma etapa de minha história começava.

A VONTADE, FOI MAIS FORTE DO QUE AS PALAVRAS QUE PODERIAM TER DESTRUÍDO UM TÍMIDO SONHO.