AMORES MÓRBIDOS

Rita de Cássia hoje voltou da rua toda faceira, sorridente, o suor a escorrer por seu rosto de feições ditosas, redondas. Em seus braços, várias sacolas abarrotadas de legumes, carnes, verduras, temperos, ervas aromáticas, condimentos exóticos e um livro de receitas cuidadosamente guardado no bolso de seu avental. É verdade. Rita sempre fora às compras assim mesmo: de avental. Jamais se incomodara com os comentários jocosos das polidas senhoras, trajadas com esmero, a empurrarem seus carrinhos de supermercado repletos de saúde, magreza e empáfia. Não pertencia àquele mundo de saltos altíssimos e esmaltes reluzentes, não havia tempo para vaidades vazias, nunca houvera, e muito menos agora. Agora que Rita de Cássia tem um plano.

Rita casara muito cedo com um homem de excelente posição financeira e um braço cruel. Tornar-se criada do próprio marido talvez fosse um fardo para os outros, que se incomodavam em ver uma mulher sujeitar-se a uma humilhação daquelas, àquela submissão medieval, no vigor da Lei Maria da Penha, em pleno Século XXI. Mas Rita não se importava nem com os gritos, nem com as infidelidades e tampouco com as costumeiras agressões físicas e morais. Boa católica, gentil, amável, estupidamente satisfeita e dotada de uma timidez que beirava o retardo, sentia-se protegida pelas descabidas proibições e pelas ameaças ora veladas, ora escancaradas, regadas a álcool e sadismo. Talvez se tivesse uma amiga, mas amigas envenenam os casamentos duradouros com seus sombrios conselhos, portanto, conversar com outras mulheres não lhe era permitido. Mas ela não achava ruim, afinal, o que diria a uma amiga se não conhecia coisa alguma, se não pensava uma vírgula a respeito de nada? Porém, apesar de vitimada pela solidão cruelmente imposta, Rita não terminou em si.

Dissera-lhe há muito tempo um ginecologista que ela não poderia ser mãe. Nunca. Jamais. De Cássia apenas olhou para o médico, sorriu, agradeceu pela consulta e saiu do consultório com sua fisionomia de quem se conforma com tudo, naufragada em uma indolência extrema e risonha, a ignorar a catarse que hoje veio à tona em silêncio, sem rompantes passionais ou perturbações violentas.

Mas, como mulher divina e virtuosa, Rita acabou por ignorar todas as ciências do mundo e descobriu-se grávida quando estava por entrar no quinto mês de gestação. A princípio, preferiu não ficar radiante ou comemorar a novidade, esboçar reações de contentamento poderia aborrecer seu esposo, e ela não queria perder o bebê. Então, aguardou pacientemente pelo aval de seu senhorio, que não se fez de rogado ao pautar até onde deveria ir sua alegria de mãe, até onde poderia ir sua felicidade pela vinda de seu primeiro filho. Não precisaria mais acariciar o ventre às escondidas, estava devidamente autorizada a amar sua gravidez. Mas, sem excessos.

De volta ao plano. De Cássia pôs-se a fatiar cebolas e tomates, cortou cenoura, batata, chuchu e beterraba em cubinhos, macerou uns bifes de carne nobre com um delicado martelinho antes de untá-los com alho, pimenta do reino, vinagre balsâmico, alecrim e curry. Óleo de soja, champanhe, uvas passas e arroz, misturados em uma frigideira, à espera do saboroso ponto, ao lado de uma panela na qual os ovinhos de codorna nadavam em água fervente, apetitosos. Pimentões verdes, amarelos e vermelhos recheados com ervas, ricota e cream cheese, delícias sublimes, mimos culinários. O aroma que escapava morno da cozinha pareceria agradável a um olfato desatento e ordinário, mas não iludiria a percepção de uma mãe ferida.

O homem sentou-se à mesa delicadamente ornamentada com uma trabalhada toalha branca de renda e mal reparou nos talheres de prata impecáveis, na louça de uma alvura angelical, no lenço dobrado feito manta a proteger o corpo de um delicado príncipe. Concentrou-se em engolir com os olhos – olhos de um faminto mendigo – o formoso banquete, antes de tragá-lo ferozmente. A criada com a qual casara, sempre atenta e sorridente, observava-o enquanto ele se empanturrava de modo vulgar, a comida a fugir-lhe da boca como se lhe fosse odioso alimentar um demônio. Em um corpo sem alma, o alimento caía no vazio, devorado às pressas, em grosseiros bocados levados à boca de mastigar autômato.

Rita de Cássia, em um raro momento de transgressão, perdeu-se em pensamentos, distraída, a ignorar se o marido desejava que ela lhe servisse mais um pouco de prosseco. Lembrou então Rita de seu filho. Descobrira tarde demais que mulheres como ela e homens como aquele deveriam ser proibidos de procriar, ser esterilizados pelo governo devido à gritante incapacidade de criarem uma criança em um lar aconchegante, seguro. Após anos de humilhação e surras que haviam começado ainda em sua infância e se arrastado até sua adolescência, o filho de Rita acabou por sair de casa aos 16 anos de idade, antes que o próprio pai o matasse. Não pensou em momento algum em levar sua mãe com ele. Nasci do ventre de uma morta.

Ontem à tarde, a nora que Rita de Cássia jamais conhecera, bateu à sua porta. Trazia ela nas mãos uma urna funerária com as cinzas de seu jovem companheiro, que havia morrido enquanto fazia o que mais gostava: brincar com seu filho. O coração dele parou assim, do nada, Dona Rita, aos trinta anos. Os médicos disseram que foi por causa de uma má formação congênita. Estranho, às vezes eu tinha a impressão de que aquele coração nunca iria parar de bater, que pulsaria pela eternidade, tão bonito, tão veloz. Ele tinha saudade da senhora, se arrependia muito de tê-la deixado aqui. Acho que ele gostaria que a senhora ficasse com suas cinzas. Nunca voltou aqui porque tinha medo que o pai não o engolisse.

Que o pai não o engolisse, pensou Rita com o vaso em suas dedicadas mãos – que jamais defenderam o filho , o olhar despido de qualquer ímpeto, a observar aquela moça tão triste e tão serena que muito provavelmente jamais voltaria a ver, que poderia ter sido sua única e melhor amiga. Também não conheceria seu neto.

Que o pai não o engolisse, pensou novamente Rita antes de fechar a porta da sala e correr à cozinha, onde esvaziou uma lata de feijão e nesta depositou as cinzas do filho.

Ele nunca vai saber que tem uma nora, nunca vai saber que tem um neto, não vou deixar que ele os faça mal. Mas meu filho, o filho que eu deixei partir, que eu não vi casar, que eu não vi ser pai, que eu não vi morrer, ele vai engolir. Vai engolir. E vai gostar.

No dia seguinte, Rita comprou um livro de receitas e foi ao mercado.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 20/10/2011
Reeditado em 26/10/2011
Código do texto: T3288068
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