Sobre Verdades e Destinos
Jorge Luiz da Silva Alves




     Os aplausos ainda ecoavam pelo estádio quando Leila subou ao pódio, apoteose merecida pelo desempenho soberbo na carreira dos duzentos metros rasos. Passadas de gazela elegante e destemida, os cabelos esvoaçantes e o esgar de força que desenhava em sua arcada a imagem da tenacidade própria de seu gene, uma raça de fibra que impôs seu domínio a uma parte do mundo hoje cobiçada, mas a bela morena de contornos generosos não queria saber disso, por hora; lembrava apenas da orientação de seu dedicado treinador na melhor desenvoltura quando na pista, o não inclinar acentuadamente sobre a coluna para facilitar o crescimento durante o pique principal, a respiração compassada sempre de acordo com os trechos percorridos, até mesmo o modo de pisar na marcação de arranque...sabia da respiração ofegante da vitória quando a medalha fora-lhe posta no pescoço, o pedaço de metal banhado em suor, sangue e renúncia de tanta adolescência maculada pela seriedade das competições mundo afora, a respiração forçada na mágoa com derrotas imerecidas pelos milésimos de segundo que não lhe permitiram esticar um trecho de pescoço à frente da fita de chegada, o choro, a raiva do sorrisinho de mofa das amigas-onça concorrentes de meses e anos a fio, o desabafo nos braços e corpos dos desabafos-de-ocasião em danceterias, onde o cuidado com o que ingeria era enervantemente exercitado por conta de laboratórios que acham que toda iguaria é dopante; sabia, apenas, do aplauso que ribombava-lhe o espírito em saudação maravilhosa naquela tarde-noite de Guadalajara, compensando os azares cariocas de dois mil e sete, quando, muito nova ainda, teve sua concentração para o Pan pátrio prejudicado ao saber daqueles contos-da-carochinha, que sua mãe não era quem deveria ser, de que as suas origens eram outras, etc. Moça, sadia, vitaminada e abduzida por inteiro pela pira flamejante do esporte que abraçara para fugir da carência periférica que lhe sobrara por destino, tinha nas mãos a certeza de que perguntas do tipo “quem sou, donde vim e para onde vou” dispensavam todo tipo de curiosidade, pois o que houve (e seus olhos não viram) o seu coração não sentiria.


     Mas Leila também sabia que, quando cessam os aplausos e tapinhas nas costas, vêm a verdade, a mesma que insiste em fazer companhia quando estamos diante do reflexo de nossa própria alma. Um reflexo reluzente duma vida que muitos tentaram mostrá-la mas, em respeito à Dona Margarida, funcionária sofrida nos soturnos gabinetes de Fortaleza onde jamais conseguira passar do nível seis por conta das covardias públicas e prostituições corporativistas, nunca admitiria. Mesmo ali, após congratulações pelo êxito, no vestiário à sós com aquela presença que exalava uma magnificência estranhamente conhecida, já decorada pelos sites internacionais de fama e fortuna, quando a verdade lhe viera num cafezinho oferecido à visitante quando da volta do Rio em dois mil e sete, uma confissão de voz embargada por Margarida quanto ao que tanto temia, pois sempre ouvira (e concordara) que mãe é quem cria, não importa sob quais dificuldades ou variações temperamentais. Mas aqueles olhos soberbos não eram de reconquista ou persuação, eram de orgulho. Dum orgulho que eles desejariam muito possuir em priscas eras, mas a verdade, ah, a verdade...








     …a verdade – que não fora feita para tergiversações ou escolhas, é apenas ela, sem tirar nem por – é que Ilehanah Madhavikhia, no outono da vida, cinquentenária exilada e sofrida por uma Pérsia que não mais existia, fausto e pompa fortemente protegida nos parques privados de Connecticut/US a fim de garantir sua suserana pessoa dos insurgentes muçulmanos indignados com a paparicação daqueles que promoveram a miséria dos que sustentavam o feudalismo de mil xás(*) insensatos, sim; Ilehanah caíra em tentação com um jovem coronel deposto junto àquela decadente dinastia, que dedicara-se, dartagnanamente, a defender a última Shahbanu(*) com sua vida e seu coração, as angústias que passara com a progressiva agressividade do ex-Xá no exílio ainda buscando golpes com empresários cada vez mais desinteressados em devolver a nababesca existência do clã Madhavikhia a seu país, a bebedeira e os casos extraconjugais do consorte e o descaso dos filhos agora definitivamente ocidentalizados e destinados a torrar até o último vintém do tesouro real em estrepolias que tão bem fora-lhes ensinado. Oriunda de uma raça de mulheres das mais formosas e férteis de todo o planeta, capas da National Geografic Magazine de belos e penetrantes olhos claros e percepção de mundo invulgar, sabia que a semente do jovem militar fermentava-lhe o real cálice apesar das andanças das idades; apenas um objeto de família como tantos postos às pressas no boeing da família ao fugir dos aiatolás, decidira passar um tempo nas famosas dunas do longínquo Nordeste brasileiro, onde possuía contatos desde o reinado; um deles, empregada jovem e ambiciosa do Meirelles, Fortaleza – e certa de que ninguém dar-lhe-ia falta, pelo tanto de amores por suas mesquinhices próprias...



     ...e tão certo quanto tudo o que fora teclado nesta tela, é que Leila jamais modificaria seus princípios, por mais românticos e justificados que fossem os passados – mas Ilehanah também não viera atrás de perdões, vinha apenas apreciar a força e determinação dum sangue que fermentara quente e vencedor nos planaltos iranianos, séculos atrás; a moça recebera o cumprimento de uma forma fria porém respeitosa (e visivelmente emocionada, mesmo contida a custo), e devolvera-lhe custosamente com perguntas sobre como anda a vida na distante América e pelos assuntos sociais que tanto lhe tomam o tempo de prolongado exílio. O ar blasé da elegante persa servia como oportuno verniz para conter a intensa curiosidade sobre tudo acêrca da prole conscientemente abandonada, enquanto a vitoriosa velocista segurava à rédea firme a cavalar vontade por saber mais e mais sobre o DNA poderoso que, metástico, infestava-lhe a personalidade. Eis que a face corada de Margarida aparecera na porta, lembrando-lhes despedidas forçosas. E enquanto a digníssima imperatriz, deposta e exilada de sua nobreza e maternidade por amor à etiquetas, afastava-se na certeza de que o Destino sempre cumpre seu roteiro, Leila festejou – já esquecida de seu temeroso confronto com a Verdade – abraçada à Margarida, mãe para todo o sempre, o fato inquestionável: destinos, tal e qual os obstáculos duma pista de Vida, foram feitos para se superar, de acordo com a Humanidade que habita em todos nós.


(*) = Shahbanu: título da imperatriz do antigo Reino da Pérsia;: título do imperador persa


(Fotomontagem: Ana Cláudia Lemos, medalha de ouro em Guadalajara 2011 e a imperatriz Farah Diba, da dinastia Pahlevi, deposta do Irã em 1979 com seu marido, o Xá Rezah Pahlevi, pela revolução Islâmica que até hoje comanda o destino da antiga Pérsia)

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Jorge Luiz da Silva Alves
Enviado por Jorge Luiz da Silva Alves em 28/10/2011
Reeditado em 28/10/2011
Código do texto: T3303615
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