FLORAIS DA SOLIDÃO I - A MULHER QUE DESEJAVA FICAR SÓ

Boa noite. As sete pessoas que estavam no elevador a cumprimentaram. O tom era esse mesmo. Pensou ela. Um boa noite, ríspido, seco. Uma saudação estéril, como uma lâmina, um choque eletrico, significando um corte na luz de neon, um veto a qualquer possibilidade de intimidade. Não era mal educada! Apenas não os conhecia. Pensou consigo mesma, enquanto o elevador subia. Podia sim, ser uma esfinge urbana E daí ? Naquela metropole habitavam tantos restos de pessoas. Ninguém tinha nada a ver com a vida dela. O elevador parou no terceiro andar. Desceu uma jovem que parecia lhe familiar. Voce trouxe a sua camera kirlian para fotografar a minha aura? Fitava o entregador de móveis. Não? Então perdeu a oportunidade de conhecer os meus segredos infantis e os meus medos infernais. Mas isto de fotografar a aura era antigo. Já havia caido de moda. Desculpou-se, consigo mesma. Havia o medo daqueles restos de conhaque dele e da imagem dele refletida no espelho do elevador. Depois dizem que vampiros não aparecem nos espelhos. Quinto andar, O entregador fora buscar a ferramenta esquecida. A verdade única e exclusiva é que ela queria ficar só. Não aguentava mais ver gente a sua frente. No banco, no metrô, no mercado, no elevador. Havia gente demais no mundo. No mundo dela.

O que há de mal em alguém querer ficar só. Ela tão somente queria ficar só. Já encerrara o seu expediente no banco, já pagara a conta de água, de luz, de telefone e do condominio. Tudo nas suas datas corretas. Era metódica mesmo. O que há hein gente ? Há sete bilhões de pessoas no mundo e porque voces me olham assim ? Sou alguma marciana, Alguma extraterrestre : Tenho tres olhos, cinco bocas ? Voce , sim ! Olhava a professora universitária do sexto andar.

Sim, voce mesma ! Para de tentar ler e escutar os meus dialogos loucos, impertinentes, psicociberteneticos ou a porra que forem .....respeito é bom e eu gosto!!!!

A professora desceu. O elevador cotinuou subindo....ainda haviam tres pessoas...ela desejava muito ficar só.

Ah, eu preciso ficar só! Mas como era dificil ficar só. Com todos aqueles tres moradores olhando para ela. Como era dificil dizer não ao cordão umbilical. Dizer não as vontades, dramas sexuais, romanticos, politicos e pós moderno da sua epoca. Dificil dizer não aos sobrinhos de maçãs verdes-laranjas e aos insetos fálicos sujos , ora de graxas, ora de letras , que insistiam em rondar as suas carnes.

Vá com deus! Disse para si aliviada, quando desceu o terceiro morador. ainda ficavam dois. Dificil era dizer não ao sangue. A semana passada, mandara o pai e mãe para o interior. São aposentados! Não tenham falsas penas! Eles estao vivos e não mortos!

lembou que sua mãe até tentou uma chantagem. " Filhinha...nós estamos velhos..." Ao que ela retrucou prontamente .."De São Paulo até Novo mundo, são apenas quatro horas." Teve que ser dura. ela desejava ficar só. A bem da verdade nem sabia direito onde fica Novo Mundo. Tinha parentes lá. Até o pai tentou usar os olhinhos encantadores. Inútil e em vão. Sabia que havia sido cruel. Mas já havia se programado ferozmente contra qualquer recaida. Adrenalina, endorfina e gelo na contenção de todos os seus hormonios e veias de sensibilidade. " Boa viagem.....Eu amo voces! Amo muito...." Ajeita a mão insensivel que antes dera adeus, nas pequenas compras que fizera hà pouco. O elevador parara no seu andar.

Ela desceu, entrou no pequeno apartamento, jogando a bolsa sob o sofá. Foi a cozinha e preparou um café e comeu algo. Tomou um banho e pôs a sua roupa de ginástica. " Um, dois, tres , quatro "

Ordens médicas. Era preciso fazer uns exercicios. Pensava agora em Luis Alberto, o seu ex amor. Quando os dois se separam ele estranhou a decisão de ela querer ficar só. Mas isto é obvio partindo de um homem! Os homens estranham tudo o que vem de uma mulher!" Querida Maria Isabel, eu não entendo voce !!! " Ora, francamente, ele nunca a entendera...." Durante dez anos, Luiz Alberto, vonce nunca me entendeu, porque iria entender-me agora?

Quando os dois se conheceram, o Luiz Alberto era muito engraçado. Tinha bastante humor. Ele fez um fiu-fiu tão ridiculo que ela acabou achando graça. Achou mais que graça....achou originalissimo....pois já estava apaixonada. Um fiu-fiu de hipopotámo. Aquele vendedor de filtros de água tentando imitar um lobo ardente e selvagem. Totalmente ridiculo e já possuia sim, uma ligeira barriga, que avolumou-se mais e mais nestes dez anos. Certo dia assim, meio chuvoso, ela viu o Luiz Alberto partir numa nave espacial para a Argentina. Coisas do Mercusul. Ele havia tornado-se sócio da fábrica de filtros de água. Ela achou ótimo. O casamento acabara. Ela ficou felicissima, já não aguentava mais fesfilar com aquele hipopótamo sem graça. E depois, ela queria mesmo é ficar só.

Um , dois, tres, quatro. De vez em quando, recordava ela ,agora sózinha. Luis Alberto tentara contato com o seu planeta através do bip, do celular, da secretária eletronica, com o avanço dos meios de comunicação, pela internet....Inútil. Ela enterra todas as possibilidades de contato. Pedia a irmã, notícias rápidas sobre os pais.

Com os amigos, já não tinha mais contatos também. Aliás, por onde andavam os amigos dela ? Um, dois, tres, quatro. E ela recordava , sem remorso todas as atitudes tomadas.

Adeus celular, Adeus secretária eletrônica, bip, fax, endereço, orkut, cep , e-mail. "Eu precisava ficar só e todos voces eram os meus carrascos, os meus torturadores me pondo em contato direto com o mundo , com a realidade....sem direito mais ao sonho....eu queria ficar só. Voces me transformaram numa central eletrica. Numa medusa cheia de fios encaracolados e luzes piscando....eu me sentia um prédio da Telesp. Era horrivel, enlouquecedor.....eu recebia amor demais, amizade demais, atenção demais dos meus pais....teria que no futuro acabar fazendo terapia.

MAURICIO DE AZEVEDO

CONTOS DA VIDA SEM A ARTE

MAURICIO DE AZEVEDO
Enviado por MAURICIO DE AZEVEDO em 17/11/2011
Reeditado em 17/11/2011
Código do texto: T3340620
Classificação de conteúdo: seguro