O dia que Ana não morreu

Estava tão frio que a pele parecia não existir. Como se o vento gélido e cortante tocasse direto a carne.

Isso eu sinto o tempo todo. Ou não? Não, não é assim. É diferente e eu não sei explicar. Já folheei alguns livros sobre dor, tragédia, sobre mim, e procurei alguma coisa que pudesse ser o eufemismo do que sentia. E não encontrei nada. Nenhuma palavra das que me faltam agora.

Mas aprendi que a matéria prima da alma é o corpo. Que nada substitui ou substituirá de qualquer forma o a ferida do corpo ou o reflexo de uma alma em pânico. Nada.

Já faz tanto tempo que não consigo mais olhar minha mulher, ou que sobrou dela. As pernas, dela obviamente, me parecem tão fracas, ela toda me soa assim, exceto uma parte. Quando ela vem por volta do meio dia e me traz o prato com uma comida sem gosto, é como se a sombra do que fora um dia esteja condenada a me perseguir. E eu sinceramente sinto que também pode ser o contrário. Ou que a pena seja mútua.

Está difícil.

O movimento dela, antes ilimitado, foi um que me fez ter certeza que o próprio vento moldava-se para acompanha-la. As brisas mais leves e até um vento forte que pegamos numas férias ficavam enfeitiçados e viravam orquestras de sopros regidos por seu cabelos. Há 15 anos isso não existe mais. Agora, bem agora, o que vejo é que ela cambaleia de lado a lado, entre paredes que agora teimam em mudar de lado e estar sempre de encontro a ela. Minha mulher e eu parecemos incomodar o mundo.

A única coisa que me assusta nela são os olhos. Os olhos da minha mulher. Onde quer que sua alma esteja, sente, e sente mais do que eu senti nos meus mais de cinquenta anos de sentimento. A comiseração do mundo está ali, numa ponte invisível que liga aquelas duas janelas ao corpo espiritual que uma vez habitou aquela carne. Recuso-me, às vezes, a olhá-los diretamente, pois tenho medo do que possa ver.

Faz tantos anos.

E só ontem me atrevi a dar as mãos à minha mulher.

Tenho medo das ciganas também.

Das alfabetizadas e muito mais das analfabetas.

Minha avó me disse uma vez que tivesse mais respeito pelas pessoas que não entendem as letras e mesmo assim lhe dirigem palavras. Dizia que “não são escravas da ortografia, da sintaxe ou dos tons coloquiais, formais, informais”. Essas pessoas, continuava, “aprendem a ler outras pessoas. E muito facilmente.”

Falo pois quando me arrisco ao centro da cidade as ciganas me estendem as mãos com tanta convicção que sinto que sabem da minha saudade, da minha tristeza, dos meus segredos. E sinto que elas poderiam aliviar essa dor. Em seguida, sinto contrário. Sinto. E muito.

Mas elas não trocam o que aparentam conhecer senão por alguns trocados. São ciganas. E eu não quero deixar de sentir essas coisas, ou senti-las mais fortes e profundas. Demorou-me demais acostumar com essa dose, com essa medida. Prefiro assim.

Outro dia meu filho falou em morte e eu não senti nada. Eu conheço mais da morte do que o próprio deus ou o diabo. Disse lhe desse jeito. E antes que pudesse completar dizendo algo que me foge à mente agora, ele foi-se. Vivo é claro.

Meu filho Marcelo é destes que acreditam muito em deus, mas que parece temer ao diabo muito mais. Vive nos templos barulhentos, já viveu nos sossegados. Mal sabe ele que deus e o diabo estão apoiados sobre ele, que todos os dias ele dá a eles as mesmas doses de sangue, oxigênio, carbos-isso ou aquilo, que ele mesmo guarda-os como uma criança guarda papéis de carta.

Eles [deus e o diabo] moram é na nossa cabeça. Cada um tem seu quarto, sua cozinha, uma sala de estar. Acho que não tem banheiro, pois na imagino deus, ou o diabo, mijando e cagando em nossas cabeças.

Consciente ou sem a mínima consciência, somos nós que os visitamos; e para mim, temos que visita-los sempre, saber como estão. Perigoso é quando somo convidados a entrar em suas moradas, e entramos, sentamos na sala de estar de algum deles, tomamos o chá. Assim ficamos tempo demais, nos apegamos a algum deles, ficamos presos como que num casamento mal feito. E, assim, não sabemos onde anda o outro. Se mudou-se, se está começando uma revolução por nossas cabeças.

Era isso! Isso que eu queria te falado a Marcelo.

Meu filho vive nos templos, me falando de vida e morte, de amor e redenção, perdão. Ele não sabe nada sobre a morte, eu sim, mais que o próprio deus ou o diabo. Já falei isso, não é mesmo?

Me disseram esses dias que de tempos pra cá eu não falo coisa com coisa.

E meu filho me fala sempre de perdão, uns tios e tias também. E quando ele fala com minha mulher ela chora. Quem vai perdoa-la?

Amanhã Marcelo volta. É meu aniversário e é sábado.

E eu vou falar com ele que só quero saber por onde anda o sorriso e o andar da minha mulher.

Onde estão meus pés quando durmo.

E por onde anda Ana, minha filha. Suicida aos dez anos. Há 15 anos pulou da sacada com um bilhetinho no bolso.

Dizia que amava o pai, mãe, Marcelo e o nosso carro branco.

Meu filho não sabe nada sobre a morte.