"A Crise Abateu Sobre A Cris"

Á pedidos ( ou pura dependência psicológica de escrever. Acabou-se a síndrome de abstinência literária ).

Quando a Leda me pediu para fazer isso fiquei apavorado!

A dita proposta era muito simples: ela queria que eu editorasse o novo livro de contos do Carlos Malta. Exultei com a ideia, mas fiquei apavorado. O que ele escrevia não era pra gente comum que lê a Gazeta do Povo, assiste 438 partidas de futebol por ano ou saí do trabalho voando em seus carros para assistir novela. Era doentio. Demente. Desagradável. “... But i like it”... Como dizia o refrão. E ela me pediu para dar uma checada no cara. Ou seja, eu teria que ir à casa do cara! E ela me conseguiu o endereço com a sua repórter Gika Bala que rezava a lenda tinha morado com ele por alguns meses ou coisa assim.

Nesses anos todos como editor independente tinha ouvido todo tipo de histórias sobre ele. Que bebia vinte horas por dia e dormia por duas. Que, como Hemingway e a Virginia, escrevia em pé. Que morava numa choupana ao pé da serra do mar cercado de cães pit bull e que tinha uma calibre doze atrás de porta. Que nunca tinha cortado o cabelo na vida e que estes desciam muito abaixo da bunda. Que ele tinha uma câmara de orgônios em casa que ele mesmo tinha construído. Que percorria 50 quilômetros por dia à pé para ir e voltar ao jornal. Que ele batia em mulher. Que ele tinha sido jogado na “roda dos enjeitados” e adotado por padres e que aos doze anos fugiu do monastério porque tinha sacado que deus não existia e caído na vida. Que tinha sido traficante de cocaína e que nunca tinha sido preso. Que era um louco recluso que metia bala em qualquer um que batesse em seu portão. Que insultava os garçons e proprietários de bar. Que destilava sua própria bebida. Que não sabia quantos anos ele tinha porque nunca tinha sido registrado. Que tinha lido um bilhão de livros e que tinha aprendido a ler e escrever sozinho. Era isso que a gente escutava de um ou de outro pela cidade. Era isso que se dizia em voz baixa e sussurrada pelos becos de Curitiba. E eu tinha que ir conferir o cara e fazer-lhe uma proposta de editoração. Resolvi encarar a parada e quando entrei no carro e dei a partida confirmei o endereço e não parecia longe de onde eu estava. Parecia que alguma dessas teorias malucas não tinha sobrevivido ao fato real. Em quinze minutos cheguei ao número indicado e percebi que estava num bairro, aprazível, agradável, arborizado, de várias casas e edifícios bonitos bem próximos à região central de Curitiba. Eram umas quatro horas de uma tarde ensolarada e quente de primavera, quase fim de novembro quando conferi o apartamento e toquei a campainha do porteiro eletrônico. Eu sabia que ele estava em casa porque a Leda tinha me dito de antemão que ele estava de folga do jornal por alguns dias. Ele atendeu em trinta segundo e percebi pelo aparelho que sua voz tinha um tom meio roufenho que fui constatar o porquê mais tarde. Entrei por um comprido corredor. Um prédio antigo de dois blocos com apenas doze apartamentos. Ele me recebeu vestindo uma calça de veludo cotelê preta, uma camiseta branca folgada e com os pés descalços. Sorria ao me receber. O cabelo que era um pouco abaixo dos ombros, estava amarrado num rabo de cavalo. Uma tatuagem aparecia no braço direto debaixo da camiseta. Apresentei-me e ele mandou que eu entrasse. Entrei pela cozinha. Ele me conduziu até uma sala de estar e pediu licença para calcar os sapatos e mijar. Foi isso que me disse. Sentei em um dos sofás ( haviam dois ) e comecei a reparar no ambiente. Uma mesa de centro cheia de revistas tipo Rolling Stone e Bravo. Um a aparelho de som daqueles potentes “três em um” dos anos 1970 com aquelas enormes caixas de som de madeiras e aqueles amplificadores porreta, uma penca de discos de vinil ao lado e o que estava no prato pronto para ser rolado era “A Sagração da Primavera” de Igor Stravinsky. Coisa de primeiro nível! Tinha uma estante abarrota de livros na parede e quando passei uma rápida vista de olhos notei que lá tinha lido vários deles e outros que não conhecia percebi que talvez um dia fosse a fim de ler. No mais parecia um apartamento de solteiro comum e trivial como o de qualquer pessoa. Onde entra a parte louca, pensei? Será que ele vai se embriagar e enfiar o pé na minha bunda porta afora se eu cometer alguma gafe? Hoje confesso às gargalhadas que enquanto esperava por ele naquela sala de estar estava eu bem apreensivo. Onde estaria sua calibre doze e suas armas e facas? Onde ele destilaria sua própria bebida naquele apartamento? Ele demorou uns cinco minutos para voltar. Sentou e olhou diretamente com os olhos castanhos vermelhos pelo consumo de alguma coisa. Posso jurar.

-Ei, você disse que a Leda pediu para você editorar meu próximo livro? Perguntou-me a queima roupa.

-É. Afirmei – Gosto do que você escreve.

-Quer uma bebida? Uma vodca gelada, uma cerveja? Que tal um uisquinho gringo legítimo ou um vinho tinto seco? Tenho desses para a Layla, minha garota.

Cara, ele tinha até uma garota! Que bebia vinho tinto! Onde entrava a loucura, o caos, o desespero e a demência? Disse-lhe apenas que uma cerveja estava ótimo e ele levantou-se, foi até outro cômodo e trouxe-me uma latinha. Abrimos e brindamos e demos nossos longos tragos. Se ele bebia a valer iria sentir hoje o drama porque sou de acompanhar qualquer um. Já derrubei muito pinguço profissional enquanto lá estava eu levemente alto. Ficamos por ali, biritando e conversando amenidades. Não queria abrir todo o jogo para ele. Minha proposta era a padrão. Ele me mandaria os textos, eu encaminharia para a revisão e faria toda a parte gráfica e ofereceria dez por cento de preço de capa e prestação de contas semestral além de toda a divulgação & mais três livros para mim. Nada de mais. Será que o Carlo Malta concordaria? Se ele fizesse cu doce eu botaria ele no porre e faria assinar até o seu atestado de óbito. Eu era bom nisso. Já tinha negociado com pessoas muito mais difíceis e até aquele momento ele me pareceu ser um maluco bem interessante e bacana. Claro que eu já tinha ouvido falar que o Carlo era ácido, irônico, sarcástico, cáustico e naquele início de colóquio me pareceu apenas que ele tinha uma inteligência e perspicácia das pessoas que tiveram duros esfregões com a vida.

-Você é judeu? Ele me perguntou.

-Sim. Concordei – Meio judeu meio inglês. Meu pai veio de Dartfort, terra do Keith Richards.

O seu sorriso continuava no mesmo lugar. Acendi um cigarro e ele fez o mesmo.

-Já ouvia aquela do judeu que queria papar a mulher do árabe?

-Já. Respondi-lhe.

Ele deu uma gargalhada engasgando-se com a fumaça do seu cigarro de filtro amarelo. Disse-me que ficava irritado com a ideia de parar de fumar, mas que depois de trinta anos de uso do produto estava começando a se sentir um pouco mal e estava dormindo pouco e acordando com um mau humor mais feroz do que de costume. Que o trabalho no jornal o entediava e que a tal Layla , sua namorada, estava começando a ficar muito ciumenta e possessiva e que a amava muito. Achei muito estranho ele me dizer, porém recebi esse tratamento como um “ei, cara gostei de você, quer me ajudar, tem algum dinheiro? Acho que confio em você, mas babe, não me ferre”. Ele trouxe mais cerveja e uma dose de vodca gelada que virou goela abaixo de um trago só. Expliquei-lhe os termos do contrato e ele apenas meneava afirmativamente a cabeça, os olhos fixos nos meus e ouvia com uma expressão atenta como se quisesse capturar qualquer palavra mal colocada. Corria o boato que ele vendia seus volumes de mão em mão nos bares e shows de rock e se fosse verdade eu entendia que ele queria jogar limpo, às claras. Ele pegou mais vodca e virou.

-Bicho, alcança uma dessas para mim? Parece bom isso. Eu lhe disse.

Foi até a cozinha e trouxe a garrafa e um daqueles copinhos pequenos de bar. Encheu e me deu. Fiz como ele. E continuamos a conversar. Seu telefone celular tocou, ele pediu licença e desapareceu em um dos quartos. Ficou uns dez minutos lá e voltou com uma cerveja na mão direita e outro cigarro na mão esquerda.

-Era a Layla. Vem dormir comigo. Sorriu-me.

- Já tem título para seu livro? Sei onde posso selecionar os contos. Falei por fim.

-Já. “A Crise Abateu Sobre a Cris”.

Soltei uma sonora gargalhada e falei-lhe sinceramente que isso lançado no mercado do jeito certo iria vender como pão quente ou água de coco na praia. Ele apenas pediu para ir até meu escritório na segunda feira com um amigo advogado para inteirar-se dos detalhes todos, todavia ele fechava comigo um acordo de cavalheiros por enquanto. Comprometer-se-ia comigo e com a minha empresa e acordado isso continuamos a beber como se fossemos velhos camaradas de guerra. Fiquei mais uma hora e meia virando vodcas e cervejas em sua companhia. Esse povo de Curitiba fala demais! Por isso era província vai continuar respirando ares de capital sem nunca ser de fato. A Layla chegou e usou sua própria chave. Era uma menina muito novinha, mas era muito bonita, calada e tinha um sorriso tímido. Sentava-se ao lado de Carlo e segurava amavelmente sua mão. Fomos apresentados e dei-lhe um beijinho na bochecha e então ela disse:

-Vai se envolver mesmo com esse maluco?

-É o que parece. Levantei. Tomei mais uma vodca, me despedi dos dois.

-Obrigado gente. E até segunda, Carlo. Foi divertido.

-Claro. E me deu um piscadela bem malandra, das antigas, dos caras que realmente estão por dentro do processo.

Quando comecei a caminhar pelo corredor para ir até meu carro senti meu caminhar trôpego. Estaria bêbado? Esse escritorzinho maldito teria me colocado no porr? Inspirei. Expirei. Dei a partida no carro e acendi um cigarro. Iria publicar o Carlo Malta. Seja o deus ou o diabo quiserem. Meu único pensamento naquele momento era não ser parado por nenhuma blitz.

Curitiba, 25 de novembro de 2011, 26 graus celsius – Primaveira.

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Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 25/11/2011
Código do texto: T3356298
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