O Príncipe Desencantado

Era um rapaz humilde, humílimo, que vivia de seu nobre ofício: consertar solas de sapatos, aprendido com seu pai, há cinqüenta anos na lida com meia-solas e consertos.

Sua vida modesta consistia em ir de casa para a loja e vice-versa; às vezes , com uns trocados contados ia à taverna mais próxima da vila...

Mas, eis que um dia a coisa muda de figura: vê passar o cortejo da nobreza e, entre eles a mais bela e mais doce das princesas, em seu vestido rendado, com seu porte nobre e comedido; o sorriso largo e diáfano. Imediatamente seu coração tornou-se seu; dali em diante faria tudo no mundo para tê-la em seus braços. Mas como ? Ele, um humilde borra-botas, um Zé-ninguém, como a conquistaria; como ousaria dirigir-lhe a palavra ?

Lembrou-se do sábio-cura da aldeia, que vivia nuns ermos afastados da vila ( naquele tempo podiam ter casa própria). Chegou-se à residência, bateu à porta; ele era de poucos amigos; abre-se a fresta; sorte que estava de bom-humor e franqueou-lhe a entrada.

E o jovem abriu seu coração e o fez com emoção e sinceridade. O sábio coçou a barba, meditou e disse: “E como tu, um humilde artesão, julgas que conquistarás o coração de uma nobre de alta linhagem ? “

“Ah, o meu coração é dela, desde o instante que a vi; nada mais faço senão pensar no seu rosto, noite e dia...”

E foi tão convincente em sua declaração que o velho sábio ficou estupefato e...comovido. Por incrível que pareça resolveu ajudá-lo na empreitada (coisas daquele tempo...). Abriu sua arca e presenteou-o com cem dobrões (não tinha filhos e naquele tempo os sábios eram bem pagos). Mais que isso; deu-lhe lições e bons modos. E o fez inteligente; o fez culto, espirituoso. Além disso, deu-lhe roupas dignas e o título de Barão das Astúrias.

Mas o sábio fez-lhe um alerta: “Dei-lhe os meios com os quais conseguirá seu intento; pensa que será feliz assim ? E o jovem assentiu com a cabeça. Mas o sábio, em sua imensa sabedoria, advertiu: “Um dia retornará a mim e então lhe direi uma verdade...”

O jovem não ligou para isso e, cheio de si e envaidecido, dirigiu-se ao palácio, onde foi recebido imediatamente. E foi tão polido, tão gentil-homem, tão comovente em sua declaração de amor, que o rei, que até então torcera o nariz, consentiu a união ( o conselheiro já lhe informara, ao pé do ouvido, que tinha cem peças de ouro depositadas no banco). A princesa, então, estava vivamente apaixonada; só de vê-lo descer do puro-sangue branco.

Casaram-se e, foram felizes por algumas semanas. A princesa, raramente a via; vivia às voltas com cabeleireiros, costureiras, aias e amas para manter seu porte principesco. Os nobres, queriam seu dinheiro, pois as finanças do reino não eram lá essas coisas. Ele vivia de reunião em reunião, a reverenciar pessoas estúpidas, que mal conhecia; só via a princesa em festas e em monótonos saraus...

Saudoso de seus tempos de meia-sola, retorna atônito à casa do sábio, nos ermos da cidade...

“Ah, como eu esperava “, assentiu o ancião, contente em ver confirmada a sua sabedoria.

“Aqui estão os seus dobrões”

Ansioso, o ancião guardou-os a chave na sua velha arca. ( os sábios não são tão desapegados assim)

“Mas, não te julgavas infeliz; não querias uma vida de rei, regalias...?”

“Ah, mas eu sou o mais infeliz dos homens; julgava não o ser, mas eu queria de volta minha oficina e meus solados...”

“Ah, sim, a inconstância humana! (qual o bem mais precioso para o sábio do que ver confirmada a sua sabedoria ?). Julgamos ver felicidade sempre na casa do vizinho, mas, na maioria das vezes, está do nosso lado...E a princesa ? Não jurou-lhe amor eterno ?”

“Ah, essa aí; retire-lhe os laçarotes, as perucas, as armações e, nada por dentro. Além de tudo...frígida!”

“Há,há”- riu-se abundantemente o sábio- mas tenho aqui algo a consolar-te:”

E entrou a sua cozinheira; não era linda, mas bem apanhada; estava suja de farinha, com os cabelos mal presos e desgrenhados; tinha o olhar insinuante. Dali a uns instantes estavam os dois a meter os dedos na panela de chocolate. Era boa cozinheira. Mais alguns minutos e estavam rolando no gramado ali em frente. A princesa ? Encontrou outro fútil, jactancioso e ganancioso como ela.

O sábio olhava aquilo e, satisfeito com sua sapiência, meditou, coçando a barba e a calva :

“Existe algo melhor na vida do que lamber os beiços e rolar na grama ? “

E voltou para suas meditações, satisfeito em sabedoria e parco em amores.