SABEDORIA

Eu ouvi seu canto de dentro do meu quarto. Parecia ser o dia mais feliz daquela mulher. Aliás, todos os seus dias são dias felizes, pois não há um só dia que não a ouço cantar. Hoje é sábado e acordei com o canto de Marinalva. Ela cantava enquanto eu preguiçosamente abria os olhos e via a escuridão do meu quarto. Podia ouvir o barulho da água escorrendo na velha torneira que fica no quintal, recolhendo água em uma bacia que exerce a função de uma pia. É assim mesmo. A casa de Marinalva não tem espaço para lavanderia nem varanda, e esta torneira já é por demais um luxo na sua despojada residência.

Ela mora na casa ao lado desde que minha mãe era criança. Minha mãe é jovem ainda, Marinalva deve ter uns oitenta anos. É bem velhinha, e segundo dizem, nunca tivera boa vida. Sua casa tem cinco cômodos e não há nenhuma varanda. A porta de sua sala abre-se já direto pra rua, e nunca fica fechada. Pelo menos não me lembro de tê-la visto assim. As paredes são baixas e com duas janelas que circundam a porta, daquelas de madeira simples, sem luxo ou detalhe algum. Por dentro, piso de cimento simples, e dois quartos que possuem comunicação direta com sua sala. Não existe porta, apenas um tecido rústico que, do lado de dentro transforma-se numa espécie de cortina que a substituiu. Pela outra parte de sua sala chega-se à cozinha, que ostenta ainda um fogão à lenha, embora já tenha ela um fogão à gás, presente de um dos filhos. Nas paredes, tábuas presas fazendo a função de um armário. Simplesmente. O móvel mais bonito é uma cristaleira antiga, sonho de minha mãe, e que fora da avó de Marinalva, onde ela coloca seus alimentos.

Ela tem seis filhos e apenas o mais novo mora com ela. Dois deles moram na rua lateral e os netos ficam em sua companhia quase o dia todo, de forma que ela nunca está só. Todos os dias levanta cedinho, costume, diz ela, passa um café bem forte e assa um bolo ou biscoitinho qualquer, sempre um cheiro...

Mas no sábado é dia de lavar roupa. A bacia colocada embaixo da torneira e o canto dessa senhora que nunca se vê sem um largo sorriso no rosto. Motivos para ficar calada não lhe faltam. Viúva há mais de quinze anos, leva a vida sempre de maneira alegre. Seus filhos já quiseram lhe fazer morar em outra casa, mas sempre ouvem dela:

__ Pra quê meus fio, nóis moremo aqui a vida inteira, eu e o Gesuíno vivemo aqui e criemos ocêis tudo. Daqui só pro cemitério.

Ela é firme no seu falar e nada vai tirar aquela mulher da casa. Fizeram uma reforma, de fato, mas não puderam modificar porque ela não quer alterar suas lembranças, presenças e memórias que estão guardadas do lado de dentro dessas paredes nesses anos tantos.

Enquanto me levanto continuo ouvindo sua música. Canta feliz, tem voz forte e firme, tão potente quanto sua bondade. Fico aqui me perguntando: estudo, trabalho, corro noite e dia para dar conta de tudo para uma dia desfrutar de uma vida cheia de confortos para ser feliz. Daí vem essa mulher analfabeta e derruba todos os meus conceitos. No domingo, ela veste sua melhor roupa (que repete todos os domingos), coloca sua fita de pertença a uma associação da igreja e se vai feliz, na sua sandália havaiana para a igreja. E lá também canta, como todos os dias, suas canções de amor a Deus e a Nossa Senhora, provando pra mim e pra todo mundo que ninguém precisa de conforto para ser feliz.

Resisto um pouco mais na minha cama, rendo-me ao canto da mulher que se eleva aos céus e se abre num tom de alegria inimaginável para nós, modernos e adeptos do acumular. Ouço bater as roupas, sempre cantando. Ouço a conversa de muro com a vizinha da esquerda, contando casos e rindo, sempre terminando:

__ Só ce vendo!

E sorrindo sempre, abraçando um neto, zangando com a travessura do outro, de portas abertas para a rua, entrando quem quiser, tomando do seu café e comendo do seu bolo, sem cerimônia alguma. Se chega um menino doentinho ela sempre tem uma reza ensinada pelos avós, e com um beijo carinhoso lhe tira todos os males. Não precisa tocar campainha (até porque não existe uma). É só chegar e entrar pela sua porta aberta, assim como seu grande coração.

Ah Marinalva! A senhora é uma universidade inteira, a ensinar todas as ciências que nos ensinam a viver melhor. Basta entrar na sua casa e ficar dez minutos conversando. Não há sabedoria maior. Ou então se assentar na calçada à noite, onde conta seus casos, suas histórias, suas memórias, sua vida, seu ensinamento.

Quão doce é seu canto e quão suave é ouvi-la diariamente. Deus nos dê um pouco de Marinalva, e seremos uma sinfonia completa. E feliz.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 21/12/2011
Código do texto: T3399353
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