A VOZ DA EXPERIÊNCIA

VOZ DA EXPERIÊNCIA

No jornal de domingo não encontrei nenhum anúncio. Arrependo-me de não ter terminado a faculdade. Hoje sou técnico em nutrição, o que para nós, técnicos em nutrição, é quase a mesma coisa que ser nutricionista; já para eles, os nutricionistas, somos meros auxiliares de enfermagem, ajudantes de cozinha. Para os empregadores, os donos de hospital, todos nós somos um monte de merda que cuida da comida dos doentes. Olhei o bolsão de empregos em busca dos informais. Um anúncio procurando enfermeiro para tomar conta de um velho doente poderia ser a solução provisória para minha extensa fase de desemprego e, consequentemente, de falta de dinheiro.

Na segunda-feira pela manhã, atravessei o centro da cidade preocupado com a carteira que, apesar de vazia, continha meus documentos. Fui obrigado a desviar das pessoas idiotas que formavam rodas para ver outros idiotas fazendo malabarismos pela rua.

Cheguei ao apartamento na Avenida São Luiz. Uma jovem senhora abre a porta. Digo que vim pelo anúncio. Ela me manda entrar. A sala é enorme e, da grande janela, vejo toda a Praça Dom José Gaspar, inclusive a biblioteca Mário de Andrade. Um senhor de poucos cabelos grisalhos está sentado numa cadeira de rodas observando tranquilamente a cidade agitada lá em baixo.

É para tomar conta do meu pai, diz a mulher.

Tudo bem, e quando posso começar? pergunto.

Agora mesmo, se não se importar. É que na verdade nosso antigo enfermeiro pediu demissão na sexta-feira. Coloquei o anúncio às pressas. E graças a Deus você apareceu. Disse ela enquanto pegava sua bolsa, um casaco e um guarda-chuva. Algumas pessoas em São Paulo têm a mania de carregar casacos e guarda-chuvas, mesmo nos dias em que não vai chover ou esfriar.

Precisava responder rápido, também queria me livrar daquela mulher tanto quanto ela parecia querer se ver livre da minha presença e do velho. Aceito. Respondi. Ela parecia já ter certeza de minha resposta desde o momento em que entrei. Então está bem. Pago semanalmente, toda sexta-feira. No armário da cozinha estão os remédios, com as receitas indicando a posologia. Tem sopa e frutas na geladeira. Papai não pode comer outra coisa. Fique à vontade para abrir os armários e preparar qualquer coisa que desejar comer. Volto às sete. Até lá. Disse a mulher saindo apressada.

A principio não tive problemas com o velho. Sentei no sofá e liguei a televisão. Ele só virou a cadeira depois de duas horas. Quero descer, andar na praça. Foi só o que disse. Como não havia instruções sobre isso, resolvi levá-lo. Tentei puxar conversa. O velho não respondia às minhas perguntas. Apenas pediu que não o tratasse como uma criança. Tudo bem. Pensei comigo, velhos e crianças, pra mim, sempre foram a mesma coisa; dão trabalho e reclamam de tudo.

Chegamos à Praça Dom José Gaspar e ele pediu que eu parasse ali, ao lado do bar Varanda. Escutou o samba antigo que vinha do bar. Perguntou se eu gostaria de tomar uma cerveja.

Acho que não faria bem ao senhor. Respondi.

Perguntei se você queria tomar uma cerveja, não disse que tomaria também. Me leve até a Praça da República. Resolvi obedecer, não pretendia colocar meu novo emprego em risco, não no primeiro dia.

Queria ser como a cidade. Iniciou uma conversa, fez uma pausa, olhou para as obras do metrô e voltou-se para meu rosto, deixando claro que continuaria a falar. O tempo passa e a cidade fica cada vez mais nova. Rejuvenesce. Nós não. Hoje tenho oitenta e seis anos. Ela já tem mais de 450 e está cada dia mais moça, quase irreconhecível. Quando tinha vinte anos era aqui que eu costumava namorar. Daqui eu via os operários trabalhando na construção do Copan. Era uma obra prima da engenharia civil. Cheguei a ver o Oscar Niemeyer e o Carlos Alberto Cerqueira Lemos andando e discutindo sobre a obra. Também vi a construção do metrô começar por aqui em 1978. Em 82 foi inaugurada a estação República. E que time tínhamos em 82, lembra-se? Você devia ser garoto. Mas gostava de futebol, não é mesmo? Sem me deixar responder, ele continuou. Aquele Paulo Rossi... Nosso time era muito melhor... Não gosto nem de lembrar. Leve-me até a esquina da Ipiranga com a São João. Ordenou ele. Segui empurrando a cadeira de rodas. Durante o percurso ele não disse uma palavra. Apenas olhava para o movimento das pessoas apressadas. Fez um gesto para pararmos em frente à Rua Vinte e Quatro de Maio. Observou o movimento por alguns segundos e pediu que seguíssemos em frente. Parei na esquina mais famosa de São Paulo, como ele mesmo se referiu ao local, quando deu a ordem.

Veja o bar Brahma, voltou a falar novamente com brilho no olhar. “Ah”, suspiros, de ambas as partes. Ali vi Hebe Camargo cantando. Que mulher! Você não acha? Não respondi. Estive na inauguração em 1948. Sentei-me à mesa ao lado do Jânio Quadros... Aquele gostava duma birita. Não posso falar nada, eu também gostava. Mas o bom mesmo era quando o Adoniran ou o Ari Barroso vinham cantar. Lotava. Enchia de garotas. E como eu dançava... Era um verdadeiro pé-de-valsa! Foi dançando que conquistei Catarina. No começo ela resistiu. Não queria dançar. Acho que ficou com vergonha. Também... Eu dançava muito pra ela. Mas não fui arrogante, acompanhei seus passos e sem que ela percebesse, eu a conduzia. Foi assim que ensinei Catarina a dançar. E em passos leves, naquela mesma noite dei-lhe o primeiro beijo. Ela estava tão extasiada com a dança que nem pensou em recusar. Foi durante o show do Cauby. Dali, seguimos de mãos dadas pela São João. Levei-a até em casa, na Santa Cecília, depois voltei andando até o Brás. Feliz da vida. Vamos sair daqui. Disse o velho encerrando o assunto com lágrimas nos olhos. Empurrei a cadeira no caminho de volta para a Avenida São Luiz. Ele pediu que desse a volta, sofri para passar pelo Anhangabaú, depois viaduto do Chá. Mais uma parada, agora em frente ao Teatro Municipal. Ah... O Teatro. Aqui começou a organização da Semana da Arte Moderna. Isso eu não vi. Mas ficou marcado em minha vida. Foi justamente quando eu estava nascendo. Mas aqui vi Cacilda Becker, e pouco tempo depois trouxe Catarina para assistirmos a uma peça do Procópio Ferreira. Foi justamente quando a pedi em casamento. Ah... Que saudade da minha Catarina. Por favor, vamos voltar. Estou cansado. Cansado estava eu de empurrá-lo pela cidade. Dali em diante ele não disse mais nada. Apenas lágrimas. Eu morrendo de fome, com vontade empurrar o velho ladeira abaixo, na descida da São João e vê-lo esborrachar no prédio velho do Correio.

Quando entramos no apartamento, olhei para o relógio. Seis da tarde. Escutei o badalar dum sino em pleno centro da cidade, fazia anos que não me lembrava de ouvir um sino, ou ao menos de prestar atenção em um. O velho voltou para a janela e disse na maior calma que já havia passado a hora dos remédios. Corri desesperado ao armário da cozinha, lembrei que também não havíamos comido nada até àquela hora. Procurei pelas receitas, conferi por diversas vezes as doses prescritas. Ele apenas sorria. Dei o remédio ao velho e, quando fui guardá-los na cozinha, aproveitei para tomar dois calmantes que encontrei no armário. Depois de tomar os remédios, ele rumou a cadeira até o sofá em que eu estava sentado:

Meu jovem. Você não é enfermeiro! Não é mesmo?

Sou sim, senhor.

Eu sei que não é. Um sorriso amistoso.

Na verdade sou técnico em nutrição. Tudo área de saúde. Posso cuidar do senhor tranquilamente. Não se preocupe.

Eu não estou preocupado. Na verdade, estou. Mas não comigo. Estou preocupado com você. Por favor, vá embora e não volte amanhã. Não tente ser o que você não é. O tempo passa. Eu vivi cada dia da minha vida, e hoje só me resta saudades. Saudades da Catarina. Saudades da minha mocidade por essa cidade. Saudades de mim mesmo. Ah... Só Deus sabe como tenho saudades dos meus dezoito, vinte, trinta, quarenta e até dos meus cinquenta anos. Para falar a verdade também tenho saudades dos meus sessenta, dos setenta e até dos oitenta. Tenho saudades de dois anos atrás, tenho saudades da minha vida até o dia em que Catarina se foi. De lá pra cá, a única coisa que quero é partir logo. Mas Deus me fez forte e com ele não adianta teimar. O máximo que consegui até agora foi essa cadeira de rodas. Até a lucidez ele me deixou, para que eu possa sofrer um pouco mais. Os crentes em Deus não acreditam que a vida possa ser feita só de alegria. É preciso provar um pouco de dor. Não sei quanto tempo me resta. Mas vejo que você ainda tem muito que viver, muito tempo pela frente. Minha filha não quer perder o seu tempo cuidando de mim e nem eu mesmo quero que ela faça isso, mas não é justo que pague para outra pessoa, um desconhecido, perder seu tempo comigo. Não perca tempo em troca de dinheiro, não vale a pena. Por favor, vá embora. Viva sua vida. E se chegar a minha idade, espero que tenha saudades dela. A vida é curta, meu rapaz, e veja que quem lhe diz isso é um velho de oitenta e seis anos.

Sai caminhando lentamente. Segui pelo viaduto Maria Paula. Quando cheguei à estação Sé, um grupo de malabaristas decadentes tentava fazer algo parecido com um show. Peguei as únicas moedas que tinha e joguei no chapéu que eles haviam deixado no chão. Queria me livrar delas. Não gosto de moedas. Dinheiro pequeno. Muito barulho no bolso, por nada. Depois contei tranquilamente às notas que havia roubado na casa do velho. Resolvi seguir os seus conselhos; seria eu mesmo, para sempre.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 10/01/2012
Código do texto: T3433221
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