Noivado.

Sete anos passados desde a última festa, silêncios e temores dissipavam a sensatez, por um instante foi possível vislumbrar a vida despedida num fato qualquer. O vestido de noiva envelhecia no enquadramento da fotografia, as memórias distantes soterradas pelo irrefutável prosseguimento da vida, restando apenas a emboscada da morte que se materializava num olhar, num perfume e revirava a memória despertando uma perda quase esquecida no coração.

Perplexos sete anos se passaram sem perturbações ou grandes alegrias, o anel do quase noivado trocava o fundo da gaveta pelo calor duvidoso do bolso de um paletó, era um sonho impossível que o anel parecia sustentar. A noite vestia seus mistérios em sombras, as ruas estreitas calavam segredos entre ruídos hostis. Qualquer caminho levaria a casa de Nicoll, em sua pouca idade, risada elétrica e olhares gentis.

Os cabelos levemente anelados emolduravam o rosto de linhas suaves dominado pela harmonia entre lábios, olhos e nariz. A voz transitava entre de um grave exótico e um quase sussurro, confessional e erótico, que apesar da sensualidade que emanava a sua volta todos reagiam naturalmente.

A rua estava contida nos carros depositados no seu entorno, ouvia-se o barulho das músicas, das risadas, do tilintar festivo de pratos e talheres, o frio da estação confinava os convidados ao interior da casa, homens de todas as idades e algumas senhoras da família.

Era possível reconhecer da pequena varanda alguns rostos familiares envelhecidos e diferentes, relutando ao passar do tempo e retratando o inventário de reveses dos últimos anos. Os rostos procuravam nomes que dançavam embaralhados na memória; quem seriam?

O Sr. E ainda usaria aquele chapéu excêntrico?

A Sra. L continuaria apaixonada pelo jovem Sr. N?

Onde andariam estas pessoas?

Qual terá sido o fim destas histórias?

A porta da cozinha se abriu e dela saiu uma Jovem Senhora que, embora conservasse o semblante calmo, trazia consigo a melancolia de algum fato adormecido. O frio de Bucareste trancava as janelas, abafava as vozes e confinava as pessoas. Enquanto a memória se revirava buscando os nomes daqueles rostos estranhamente familiares.

Passados sete anos de luto por Nicoll era estranho que a casa estivesse freqüentada por desconhecidos e que nenhuma memória conduzisse a qualquer emoção.

Subitamente a porta se abriu e duas figuras masculinas passaram próximas e indiferentes. Atentas ao cigarro elogiavam alguma das senhoras por tamanha devoção, falaram do estado da casa, da qualidade da comida e puseram-se a tratar da beleza da jovem senhora. Apagaram seus cigarros com a ponta dos sapatos e retornaram a sala num silencio culpado e traidor que os separou em duas direções.

Vista da varanda havia uma familiaridade espantosa com aquela paisagem. As casas levemente acinzentadas pelos efeitos do inverno, o barulho das refeições, a chegada dos automóveis dando a noção de outra parte da rotina sendo consumada.

O anel se mantinha no bolso como a referencia que motivava aquela visita, logo as pessoas começaram a sair despedindo-se da Jovem Senhora e do casal de idosos que a acompanhava. Pequenas levas esvaziaram a sala e a porta aberta permitia ouvir as canções tocadas, havia um misto de melancolia e resignação que atingia a todos e pesava mais na Jovem Senhora cujos olhos se entristeciam a confrontação com o vazio. Logo havia apenas a Jovem e o casal idoso na varanda fria.

A música havia cessado quando um automóvel silencioso se aproximou da casa desembarcando um homem de meia idade e uma criança; cumprimentaram brevemente o casal, trocaram votos gentis de despedida e quando a Jovem preparava-se para embarcar no automóvel a senhora se aproximou retirou um anel de seu dedo e o entregou a Jovem Senhora.

“Fique com ele, por favor, ele já havia mandado gravar o seu nome.”

Instantaneamente a mão buscou o anel no fundo do bolso, a suave batida no fechamento da porta trouxe de volta o nome daquela visão, porém o automóvel levando Nicoll já havia sido engolido pela escuridão.