Cruzinha de Vara

E foi Coronel Otacílio que deixou aquele velho morar ali desde moço. Na época de seu pai, coronel José Rodrigo, ele já estava ali, do mesmo jeito, com a mesma preguiça. Seu Mané Doido, era assim que era chamado, desde moço morava na casinha velha que havia sido de seu pai. Não trabalhava na fazenda como os outros moradores, não produzia nada. Dizia claramente, que não aguentava trabalho, que não nascera com essa vocação. Gostava mesmo era de prosear, falar do que acontecia com os moradores, de como tudo mudou. Mané Doido amava falar das meninas novas que subiam toda sexta a ladeira de Maçal em busca de namorado nas festas de Pedregulho. Das velhas que não se dava o lugar e queria ser moça nova, correndo atrás de coisas perdidas. Quem quisesse saber como andavam suas filhas era parar um pouco ali, e o relatório era feito, de cada uma das moças da fazenda. “Mané Doido, não fala outra coisa. Só da vida dos outros”. Meu pai dizia isso cada vez que ficava um pouco lá antes de descer a ladeira de casa. Minha mãe dava risada como se soubesse que meu pai era do mesmo jeito. Seu ar profético enfeitiçava e atolava muita gente da fazenda. Mesmo assim todos gostavam de dar uma passadinha perto da caatingueira e ouvir o que velho tinha a dizer e o que as pessoas estavam fazendo.

Dona Nila, mulher do coronel, não gostava de ninguém, e já tinha prometido várias vezes que expulsaria Mané Doido de sua Fazenda. Quando ela veio morar aqui o velhinho já morava na beira do rio. Fazia a coisa mais incrível da minha infância. Quando queria comer um peixe, dava um mergulho na água barrenta e subia tempo depois com um beré na mão. Assava a li mesmo na beira do rio e comia com farinha. Dizia não precisar de muita coisa pra viver. Eu via aquilo e simpatizava com Mané Doido.

Não se sabe desde quando é maluco. o povo daqui fala que desde menino é assim, aluado, sem aprumo pra nada, vive como se fosse abandonado, sem esperança nenhuma. “Não faz coisa alguma e se ninguém não der comida, um feijão, pode até morrer de fome, comendo só aqueles peixes que não dão sustança nenhuma”, dizia. “Mas não faz mal pra ninguém” Assim minha vó falava dele, “è como um passarinho que não quer voar mais”. “Dá até dó saber que existe gente desse jeitinho”. Quando ela começava a dizer essas coisas meu coração já apertava porque ele era mesmo desse jeito. Não tinha ninguém, parente nenhum e tudo que sabia era coisa da fazenda, de gente aqui da terra. “Não tenho vontade nenhuma de conhecer o mundo, pra quê? Todo mundo que sai volta triste”. “Aqui tenho tudo”, Ele dizia isso mascando fumo. Ele causava muita raiva nas pessoas, que queriam engolir a vida pra ser feliz. Quando estava atacado de loucura assustava a roça inteira. Se jogava na beira da estrada e se fazia de morto. E de madrugada dava gritos de lobisomem e sumia na capoeira. Aparecia vários dias depois faminto, com olhos fundos, dizendo que mais uma vez teve a chance de morrer e não quis. “ Cedo ainda, gosto muito daqui”. Outras vezes parava os trabalhadores dizendo que todos eram donos daquelas terras. Que não era justo tanta terra na mão de um homem só. Recebeu muitas chibatadas de Jagunço Elias a mando de Dona Nila. O Negrinho Mal como era conhecido falava ao pé do seu ouvido: “Ocê cala essa boca. Ocê vai morrer, não quero te bater mais. É só continuar com essa boca aberta e ocê vai morrer”. Passada a crise, voltava aquele homenzinho sereno de jeito simples, quase infantil. Seus olhos eram tão brilhantes que dava pra ver o reflexo da vida toda dentro deles. Se ninguém falar nada, nem sequer abre a boca pra cumprimentar. Apenas vez ou outra levanta as mãos espalmadas pra frente quando alguém lhe acena da estrada. Nem parecia que era doido nesses momentos.

Logo quando comprou a fazenda e veio com a familia Pra Mangerona. Casado com dona Nila, uma mulher gorda e enfezada, mas que ainda levava alguma beleza. Passava os dias, na sala escrevendo cartas pra irmã que ficou em Maratins, ou procurando em cada canto da casa alguma sujeira. O marido se ocupada das promissoras, das entregas, das compras do gado, de todo movimento admistrativo da fazenda. Isso já faz mais de trinta anos. Logo sua austeridade lhe deu respeito junto aos moradores da fazenda. Passou a ser chamado de coronel pelos moradores. Todos ganharam o direito de cultivar sua propria colheita duas vezes por semana. Nos demais dias, o trabalho era dedicado as suas crias, da sede, a sua plantação de cacau e café. As mulheres se ocupava mais com casa, cuidando dos maridos, das roupas. Era bonito no começo da manha as lavadeiras, nas corredeiras, cantando juntas canções animadas, uma festa que fazia o dia mais alegre. Da janela de minha casa, que não era tão longe da casa do velho, via o movimento da fazenda, os trabalhadores de manhã, com inchadas nas costas, os burros de cargas carregados de mandioca ou cacau. Os caminhões vindo de outras cidades pegar os carregamentos. E uma quantidade enorme de crianças correndo pra todo lado.

Foi criada o núcleo de estudo, onde frequentava não só criança, mas qualquer adulto que quisesse aprender. Eu estava lá quase todos os dias, não era obrigado, mas era bom aprender a ler, era bom ver as professoras novinhas cheia de cuidados, querendo que todos aprendêssemos. Tinha coisa que não entrava na cabeça dos mais velhos. Dizia que não dava pra aprender aquili, que o negoceio deles era a terra e mais nada. A gente que era mais jovem até que aprendia um pouco. Foi diferente quando passei a escrever cartas pra minha mãe, ou ler os pedidos que chegavam de longe na beira do matadouro geral, lugar que trabalhava a tarde catalogando a entrada de faturas. Nesse perido a fazenda mangerona ganhou fama como prosperidade. Era comum aparecer visitas de fazendeiros de outros estados pra estudar como a fazenda crescia. Queria saber também como os trabalhadores produziam tanto ganhando a mesma coisa que os deles. Seu otacílio parecia uma rei, andando em sua cavalo durante o fim de tarde. Correndo cada local, dando ordens, revendo pedidos, fiscalizando. Os homens se sentiam agraciado diante do velho, que fazia questão de conversar com todos, dando conselho, ou mesmo xingando quando necessário. Quando ele chegava nos locais de trabalho, na casa de farinha os homens se tornavam apreensível e preocupado com aquele figura que mesmo sem dizer nada comunicava tudo que queria. Havia em cada uma deles uma atitude de submissão e agradecimento. Corriam em sua em frente informando como anda a produção e os planos pra melhorar.

O velho agradecia, os olhos verdes melados brilhavam diante de cada homem que vinha conversar. Era mesmo amado e querido, todos queriam de alguma forma ser importante pra ele.

Na beira do rio morava mané Doido. Seu Manel estava lá muito antes da fazenda ser adquirida por seu otacilio. Não gostava de trabalhar. Passava o dia sentado á beira do seu barraco, olhando o rio, ou conversando com alguem que parava pra saber de sua vida. era um homem negro, magro, que nunca tirava seu o chapéu de couro de boiadeiro da cabeça. Gontava de como foi parar ali, de como seu pai comprou aquele pedaço terra, a troco de trabalho, do antigo dono. Os filhos de seu otacílio que gostava de usar palavras aprendidas no colégio, logo disse que ter cuidado com mané doido que ele era comunista. Não queria nem saber se todos de repente viesse com a mesma história. Meu pai contava que desde menino via seu manel naquele mesmo lugar, conversando sozinho e contando as mesmas coisas. Seu otacilio na levava a serio, muitas vezes ele mesmo parou ali, perto de sua casa, pra ouvir suas historias. De certo modo, ale aceitava as historias de mané doido. O único que morava na fazenda sem pagar nenhum tributo, sem trabalhar. A velha Nila, que nunca foi de grande agrado, contava que logo logo ia arrastar ele dali, que ele não era diferente das outras pessoas. Se todo mundo pagava com trabalho pra morar na fazenda, ele tinha que trabalhar, pois ainda era forte e lavoura precisava de gente como ele. Seu mané era um bom contador de histórias, era comum ele receber reclamação de alguns pais, pois muitas crianças quando saia da escola não ia direto pra casa. Ficava lá ao redor do velho ouvindo seus casos de matadores e de como as cidades da região nasceram. Era uma enciclopédia viva do sul. Não se sabe exatamente qual era sua verdadeira história. Contava-se que ficou bagunçado da cabeça quando o pai foi embora e deixou cuidando da mãe sozinho. Mas nada disso pode ser verdade. Fazia sua propria comida num fogão improvisado de pedra na frente da casa. Comia o que povo dava, feijão, mandioca, farinha, café torrado. A noite via de longe a fogueirinha de mané doido, um ponto claro que dava referencia noturna a todos que perambulava durante a noite. “seu mané parece que não dorme. “estou achando ele triste esses dias”. estão dizendo por ai que dona nila ta querendo arrancar ele dali. O velho não deixa não, gosta do doido.

Dizem que por ela, ele já tinha sido arrancado dali, ela não suporta o maluco de Manel.

A fazenda seguia seu ritmo, gente chegando de fora, novos trabalhadores para o cacau. Quando veio a notícia que seu Otacílio morreu. Todos fomos pra sede pro velório. Dona Nila na sala recebendo os pesames. Muitos trabalhadores chorando como se tivesse perdido alguém da familia. Os três filhos dele todos vieram da capital, onde estudava, para o enterro. Meu pai não quis ver o morto. Só minha mãe que foi até lá e fez um carinho na testa do defunto. Foi a primeirava que vez que vi uma pessoa morta. E a conversa girava em torno de como seria a fazenda agora. Ninguém confiava na velha nila, que nunca mostrou gostar de ninguém. Raramente saia da sede e não gostava de cumprimentar os trabalhadores. Quando voltamos pra casa deu chuva tão forte, parecia que deus sabia que alguém importante tinha morrido. Perto de casa minha mãe já reclamava da roupa que ficou no varal. Apressou o passo. Meu pai puxava minha mão, cuidando pra eu não cair no barro. No meio da tarde tudo ficou escuro, parecia noite, começou a fazer um frio. Quando passamos na frente seu mané, ele estava já janela olhando a chuva. Quase não dava pra ver ele com a cabecinha no batente da janela, observando a chuva com tristeza. Não foi no enterro, Mané? Não, fui não, preferi ficar aqui.

Um esmorecimento sem igual tomou conta da fazenda. Toda aquela força de trabalho de repente ficou esmilinguida. Os trabalhadores, passou a chegar atrasado. Depois que o velho morreu, todos ficaram evidentemente muitos tristes. O curral que era limpo todo dia estava carregado de bosta pra todo lado. as entregas de carne e cacau atrasadas, e a escola nenhum aluno voltou a frequentar. As professorinhas andando de casa em casa querendo saber o que aconteceu com os meninos, com medo de perder o emprego. As mãe so dizia que eles estava cansados e sem vontade de estudar. Uma praga tomou conta da animação da fazenda. Até meu pai que nunca faltou ao trabalho em todos os anos. Passou alguns dias reformando algumas celas que estava empoeirando na despensa. isso deixou a sede muito raivosa.

Na semana seguinte aconteceu o que todos esperavam. Dona nila mandou seu mané deixou a fazenda. Que a vida boa dele tinha acabado. Deu duas semanas pra ele encontrar um lugar pra ficar. Dona nila nunca escondeu esse desejo. Dizia que gente como aquele doido atrapalhava o andamento da fazenda e e agora estava todo mundo fazendo como ele, pensando que era dono da terra e não querendo mais mais trabalhar. O velhinho ficou sentado na frente da casa preocupado e chorando. Meu pai foi até conversar com ele, saber o que estava acontecendo. Ele não disse nada, somente as lagrimas descendo e disse que não podia ir embora. E confessou pra meu pai que nunca tinha saido da fazenda. Pela primeira vez olhei seu manel sem medo. Era tao magro, sentado no toco de pau, uma das barras da calça estava levantada acima do joelho. Deu pra ver como suas pernas eram magras e fracas. As mãos de palmas amarelas amassava graveto, que era quebrado repetidas vezes, enquanto o chão era encharcado pela lagrimas que descia. Disse que aquela terrinha era mesmo de pai que comprou do avô de seu otacilio e que tudo foi pago com muito trabalho. Fomos embora e largamos aquele homem sem chão de cabeça baixa.

A fazenda voltou a funcionar a contento. O filho mais velho do velho, Djmalma que estuda direito em Salvador acabou ficando por aqui pra ajudar a mãe. Meu pai voltou a trabalhar como quase todo mundo. A fazenda não era mais a mesma coisa, uma tristeza amorfa deixava todos se sentindo sem lugar, sem um pai. Não confiava na nova administração. Não gostava do filho do velho, que era um esnobe e não sabia conversar com o povo simples como fazia o pai. Diziam as pessoas que a escola encheu a cabeça dele de merda, que desaprendeu a ser gente. Ninguem entendia o que saia da sua boca, se mostrava superior com frequência. E foi ele que num discurso vazio diante da fabrica de couro que justificou a saída de seu Manel. “A saída desse homem da fazenda significa que estamos nunca na qual não suportamos mais ser aproveitados”. Recebeu uma vaia do povo. Mesmo assim no dia seguinte, um trator arrancou as tabuas da casa de Mané Doido. Empurrou todas as varas e o barro seco pra dentro do rio. Enquando a correnteza d’agua empurrava embora sua casa, o velhinho sentado numa pedra não reagia, não chorava e nem gritava. Apenas via atônito sua vida descendo rio a baixo. Todos aqueles homens foram embora e seu Mané desamparado embaixo do céu. Se seu otacílio fosse vivo, nada disso teria acontecido. Sempre foi um homem bravo, mas nunca levou isso a sério. Muita gente chorou com a injustiça.

Depois de quatro dias embaixo da ingazeira, dona Adezia levou ele pra casa. Deu comida e roupas limpas. Mas estava tão debilitado com as chuvas que tomou que morreu de tanto tossir. Foi enterrado perto da sua antiga casa. Agora só tem um cruzinha de vara onde ele ficava.

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 31/01/2012
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