Toda arte é autobiográfica; a pérola é a autobiografia da ostra.
Federico Fellini


 
é isso, nada mais que isso, se fosse só isso (reescrito)
 
— ?...
  — Foi assim: em Miguel Pereira eu encontro uma amiga, a Belinha, uma pessoa boa mas cheia de devaneio esotérico. Enquanto sua filha faz aula de capoeira, nos sentamos naquele “murinho” do Centro. Puxo-a ao chão e ela se perde em cogitações — conversamos um tanto e zarpo. Passando por Paty a caminho do Paiol Velho, titubeio e entro no bairro Lameirão. Eu fora convidado a assistir o tal de Paulinho Traíra tocar. Sentei-me ao balcão do Magia & Carinho onde estavam dois conhecidos, o Manco e a Anti-Cabeça. Devido à hora, num sei — quase meia-noite, poraí —, lá somente estavam os dois e numa mesa adiante mais três junto ao cara que se apresentara.
  Trelendo com a Anti, da mesa percebo aceno adornado por largo sorriso. Sem reconher, baixinho pergunto “Quem é a”... “Ora, Germino, é ela, a mulher de quem em Abrolhos eu te falei e, no dia que você me deu aquele bolo, em março, qual cupido às três da madruga a levei em seu sítio. Naquele dia não aconteceu química entre vocês. Tu ainda era ligado à ex e apegado aos filhos; ela, fumada, quase que apaga no sofá... Lembra, é a S. M.!”. Eu: “Ah, sim, é, lembro. E aí, me achego a ela?”... “Claro, vá sim, anda!”.
  Embora àquela época ainda paquerasse ficção e poema — eu lia mais ensaios, coisas assim —, conversamos sobre Mario Quintana, a esperança é um urubu pintado de verde e eles passarão... eu passarinho. Bem, combinamos de, no dia seguinte, de irmos ao Rio de Janeiro, à Bienal do Livro.
  Como naquela metrópole eu não teria pouso, ela dispõe o seu apartamento pra pernoitarmos.
  Dia seguinte, quinze pras dez, na Marajó cinza chumbo caminho do Paiol Velho à Estância Páscoa e dali, em seu Scort preto, zarpamos ao evento.

Lá perambulamos e S. compra um punhado de livros; eu, um, o recém lançado O buraco na parede, oito contos de Rubem Fonseca. Aliás, este, que dá título ao volume, é bem bom.
  Ia meado de agosto, 95. 
  Cansados da viagem e de batermos perna entre estandes, capinamos. Saindo do Riocentro ao Andaraí, onde mantinha seu covil, ela me convida a beber chope na pracinha do Alto da Tijuca. Naquele ambiente agradável, papeando despercebo a inquirição: quanto ganho com a criação de abelhas, se depois de separado eu transei, com quem... Respondo — ela sabe manejar perguntas, fazendo parecer despretensiosa trela, me suga.
  Despenca uma tormenta e alaga a praça. S. então argumenta que à sua furna teríamos de transpor favela, paus na rua... e sugere de passarmos a noite num motel, bem ali, voltando, no pé da subida ao Alto, saindo da Barra. De bufunfa curta, contraponho encararmos as sequelas do dilúvio.
  Em meio aos desvalidos e galhos à rua, fomos.

Banhamo-nos e à sala conversamos. Falamos sobre os livros comprados e bababá. Quando o cansaço se impõe, sou intimado: “Você prefere dormir no quarto das crianças ou no meu, na minha cama, comigo?”. E eu: “Bem... entende... Pra não te dar trabalho de arrumar cama pra mim, durmo no seu, na sua”.
  Na estante da alcova eu pego um livro de poemas do Agostinho Neto; ela, da sacola cata um dos que acabara de comprar. Deitados lado a lado, aguardando o sono “líamos”... quando de minhas mãos usurpa o angolano e me sapeca um beijo na boca. Eu, que nem pensava naquilo, retribuí.
  Trepamos, ué.

A você, a quem conto isso, conto assim, sem porque nem porquê por que foi assim que aconteceu o início de nós nos entrelaçarmos por dezesseis anos. Por dezesseis deu-se assim — “paixão à primeira vista”. De minha parte, nem tanto. Embora aparentemente tivéssemos os dois ingredientes fundamentais a quaisquer dois dispostos a se parearem, conversação & tesão, relutei. O primeiro, de pronto degustei; já o segundo, a princípio o acho meio acre. Ela persistiu, foi indo, indo — embora o exagero de desodorante e de perfume me perturbasse — foi até que a mim dulcificou-se. Tomei gosto. (O meu desirmão dizia q’eu trepo com a cabeça das mulheres... Que seja; e hoje, depois da porrada, adendo: com suas transparências.)  
  Claro, nossa relação nunca foi um mar de rosas, longe disso — tivemos desavenças comuns às idiossincrasias de cada um e tudo mais, mas... Mas pensei que assim, como com qualquer par, as estancaríamos...
  Tropeçando, caminhamos até agora, novembro, quando fortuitamente a descortino...
  — Peraí, você já contou isso...
  — ... É, mas foi você quem me perguntou, caramba!...
  — Perguntei como começaram, só...
  — ... Tá, me deixa seguir! Por acaso, sem nem querer eu a desmascaro. Deixo a Alfa na veterinária pra operar um tumor numa das mamas e vou à casa da S.. Aguardando-a chegar da Clínica Dra. S. M., procuro música no computador e dou com bilhetes dela ao Queridíssimo B.. Desinquietei e, surpreendido, os li; idiotizado, reli — aparvalhado os copio no meu pendravi.
Depois disso, ajuntando pedrinhas eu a desvelo com o Computa, um técnico em computação, o do pau marrom, com quem varou noite entornando...
  — Mino, você já contou...
  — ... Sei. Hoje suponho que haja paus de variadas cores... Com-ple-ta-men-te — bordão q’ela tanto gosta. Na xereca da vadia já adentrou desde as do arco-íris, cores prediletas do primeiro marido, até sei lá quais mais. Na beirada daquela cloaca urubu fica só espreitando oportunidade...
  — Olha, você já falou tanto desses bilhetes que tô curiosa pra ler...
  — Taí no computador. Vem cá q’eu os abro procê. Lê q’eu te aguardo ao alpendre.

— Puta merda! Tu tem motivos pra ficar assim, caramba. Porra, e com fonte vermelha — parece coisa de adolescente babaca ou de sirigaita das mais ordinárias! E, porra, pra quem entre seus pares tem fama de literária e escambau, ela escreve mal pra caralho! Além de erros banais de português, não conecta cu com bunda! Fechando, a cínica ainda debocha de você, diz que “volto para o meu amor...”, mas o cara, diz, o Queridíssimo, ele continuará sendo o eterno amante. Que filha da puta! No começo, ri de você e dum que entendi ser o pai dos filhos dela, é isso?!
  — É, é ele, o outro chifrudo, o A..
  — Olha, profissionalmente eu tô acostumada a ler textos dúbios, truncados etc., propositais, que até confundem, mas esses não deixam dúvida: antes de você, quando casada com o pai de seus filhos, era amante do cara; quando contigo, continuou amante; e, pelo que diz, eternamente será, independente de com quem ela ou ele estejam... Caramba, por que não se assumem, juntam os trapos?...
  — Porque, eu acho, ambos têm compulsão em trair mas pavor de serem traídos?! Se oficialmente ajuntados, que merda daria! Sabe a protagonista de Perdas e danos, do Louis Malle, que com o sogro trai o marido e, quando jovem, deixa o irmão, com quem transava, por flagrá-la com outro o deixa ciumado? É, na vida real essa persona semelha àquela personagem. Loucura! É gogó carismático... Escrevendo, nunca me enganou. Sobre estes bilhetes, até fiquei na dúvida se era a deficiência em se comunicar por escrito... Mas não, em sua casa eu os li duas vezes — bem nervoso, é verdade —, e aqui, duas. Eu sei ler, por mais mal escrito que a coisa esteja. Nem não, não é possível de alguém dizer bem o contrário ao desejado! Nem varrido... E sabe o quê, depois de tempo, sabe o q’ela me escreve? Ó só: “Concordo que lendo o que você leu, eu tambem ficaria assustada, estarrecida e emputecida. Concordo”. Numa tentativa de se justificar, baralha os pés com mãos. Se duas vezes concorda, duplamente corrobora com a minha leitura, aponta ao que disse àquele. E por anos, hein, feito sereia a mim cantava maviosa.
  Tem um irônico detalhe: a tal da Anti-Cabeça, aquela que flechou nossos corações, ela é irmã do B., o amante!
  — Ah, aí num tem premeditada treta?! Ah, que tem, tem...
  — Nem sei... Serventia a quê, se eu era um cara do mato, apicultor?...

Eu a referenciava às ficções literárias e fílmicas, à música, ao que fosse; sentia-nos escoando e à vida desaguando... De tudo lha participava. Pra sairmos da mesmice, ansiava por surpreendências...
  — A vigarista bem que te surpreendeu, hein...
  — Pô, não debocha...
  — Desculpa.
  — ... Sem querer valorar o que me acontece, não conheço, nem em ficção, alguém tão podre quanto ela! Arg, que nojo! Hoje, se cara a cara eu a vir, na fuça dou-lhe um tabefe ou uma cusparada...
  — Vocês dois, depois disso tudo, vocês nunca estiveram frente a frente, assim, pra acarear? Ela nem se prontificou a esclarecer coisa alguma?
  — E tem lá o que esclarecer!
  — Ó, de qualquer forma, como advogada-promotora, eu a incrimino e desde já a penalizo com uma bela cusparada na cara. Apenas.
  — Porra, e nós estamos num tribunal...
  — A “Maria da Penha” favorece demais as mulheres. Nem meu patrão, que é bem influente e tudo, nem ele conseguiria te tirar da cana. Mino, só não entendo como você nunca percebeu nada. Eu, que não moro mais aqui há tempos, só vez e outra que venho a trabalho, e agora pra estar contigo, sempre soube de coisa à beça. Neguinho da região, como nessa aldeia tem pouca opção de médico, é muito baba-ovo, mas, no fundo, sabe de quem se trata. É abrir os olhos e os ouvidos, cara. Mas, vem cá, tenta relaxar. Menino, aquela cadela não merece o seu tempo...
  — “Cadela”, não, cão é que não merece essa comparação, né, Alfa?! Olha, desconfiar desconfiar, nunca desconfiei não. Tinha vez q’eu percebia qualquer coisa estranha — percebia se insinuando a outros mas achava que era maluquice minha e relevava. Achava q’ela queria apenas ser desejada, que gostava de imaginar uns e outros no sexo solitário fantasiando-se com sua imagem... Mas ela não, não iria às vias de fato. Tem mulher párvoa assim. Quanto engano! Eu não poderia supor, longe disso, tamanha calhordice! E a velhaca ainda usa o meu nome como seu “dependente” pra descontar no imposto de renda.
  — O quê?!
  — E ó, não é pouca merda não, quase dois mil!...
  — Ah, eu quero saber sobre isso. Lá no escritório tem um departamento que só lida com essas coisas...
  — É?... Num sei se sobre isso eu devo me alongar. Vê, acho que você, Florinda, com o q’eu disse percebe a tranqueira. Hein, o que lamento disso tudo? Tudo, caramba: ululo de, em 18 de agosto de 1995, lastimo de neste dia ter conhecido a atriz duma longa peça onde atuei feito fantoche. Não, não são apenas um dois episódios — nesse ar insufla um tremendo bodum.
  — Ah, já sei o que é “bodum”. Outro dia você me disse...
  — Sem mas; nada mais.
  É isso, nada mais que isso, se fosse só isso.

 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 10/02/2012
Reeditado em 22/02/2012
Código do texto: T3490758
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