Chocolate amargo

Bebendo café, sozinho, embaixo de um enorme caramanchão, o homem folheava o velho álbum de fotos da avó. Estava feliz naquela tarde fria de sábado, com o coração cheio de gratidão pelo irmão mais velho, que lhe havia trazido pela manhã aquela relíquia fotográfica, junto com uma caixa de bombons amargos suíços, seus preferidos.

Ao virar uma das folhas do álbum, deparou-se com a única foto que conhecia de sua velha e corcunda bisavó, mãe de seu avô. Ela estava sentada em uma cadeira de balanço, em um quarto de assoalho de madeira e teto sem forro da antiga “Casa da Rua”, onde havia passado os cinquenta e cinco anos de casada e os vinte de melancólica e triste viuvez. Ela segurava um pequeno oratório de madeira do século XIX, que mostrava, em seu interior, uma bela imagem de Nossa Senhora da Conceição, também dos Oitocentos.

Naquela casa, o piso era todo de madeira. O homem se lembrava que, quando era criança, costumava se deitar no chão de um dos quartos e observar, por um buraco aberto no assoalho, o irmão mais velho e o primo brincarem no porão. Via-os misturarem diversos tipos de folhas com água e querosene, para jogar nos formigueiros; fazerem bolos e pães com barro e esterco de cavalo, para brincar de venda; amarrarem barbante em pardais e rolinhas, para soltar e depois puxar; urinarem em latinhas, para jogar nas meninas que brincavam de casinha no quintal; brigarem, como faziam os lutadores da TV, para ver quem sangrava o outro primeiro.

O bisavô era comerciante. Tinha uma venda de secos e molhados na frente da casa. Mas disso o homem não se lembrava, pois quando nasceu, o velho já tinha morrido. Só se recordava dos casos que o avô e os tios contavam dele: de como era carrancudo e mal-humorado, mas excelente negociante; de como abria as portas da casa para famílias pobres inteiras poderem pernoitar antes de seguirem viagem, sem cobrar nada; de como havia fundado uma associação de caridade, para ajudar os mais necessitados; de como foi aos poucos perdendo o juízo; e de como morreu, aos 92 anos, sem se lembrar do próprio nome.

Em outra folha do álbum, o homem se viu em uma foto, tirada quando tinha sete anos, junto com seu irmão mais velho, de nove anos. Estavam em pé, do lado de fora da casa da bisavó. A mãe deles aparecia na janela, com seu olhar triste, sem vida. Na foto ele vestia uma camisa branca de algodão e uma bermuda escura, muito larga. Usava também um par de congas amarelas que, brilhando ao sol, pareciam esconder dois pés pequenos e frágeis. O irmão mais velho vestia a mesma coisa, só que com uma diferença: estava todo sujo. A camisa tinha manchas de barro e sangue; na bermuda, em meio à sujeira que se notava sobre o pano escuro, havia manchas claras, amarronzadas ou esverdeadas, que tanto podiam ser de catarro seco quanto de lama; e o par de congas nem se via direito, de tanta imundície. “Aqui estão o príncipe e o mendigo”, já disseram no passado algumas pessoas, ao abrirem o velho álbum da avó naquela mesma página.

O principezinho era o xodó da família, mas não podia ser diferente: pedia a benção ao papai e à mamãe, ao vovô e à vovó, ao padrinho e à madrinha. Quando ganhava um presente, agradecia entusiasmado. Conversava educadamente, sem gritar, e ao sair de qualquer lugar, despedia-se dos presentes um a um, sorrindo. Brincava e depois guardava os brinquedos nas caixas, com muito cuidado, para não quebrar nada. Ao começar a ler, passou a colecionar livrinhos com as mais diversas historinhas. Lia todos os dias. Na escola, todo bimestre ele ganhava medalha de ouro pelas suas notas. Na adolescência, nunca ia a festas, nem saía com os colegas nos finais de semana. Só pensava nos estudos e na carreira de juiz que queria seguir depois de formado.

O irmão mais velho era o contrário. Não cumprimentava ninguém, vivia sujo, gritava o tempo todo, quebrava todos os brinquedos que ganhava, detestava ler e estudar. Na infância, só se preocupava com as brincadeiras e maldades que inventava junto com o primo, e na adolescência, com festas, garotas, bebidas e carros. Não queria fazer faculdade. Dizia que, quando tivesse condições, montaria um lava-jato e viveria disso o resto da vida.

O homem fechou o álbum pensando no irmão mais velho, que fazia 39 anos naquele sábado. Sua esposa e os três filhos dariam uma festa para ele no sítio, onde receberiam a família, os amigos e todos os funcionários dos três lava-jatos que possuía na cidade.

De repente, o homem ficou melancólico. Precisava tomar o seu remédio.

Levantou-se, com o álbum de fotos e a caixa de bombons nas mãos, e atravessou o pátio, à procura da enfermeira. Encontrou-a assistindo televisão na sala de estar, ao lado de dois outros internos, recém-chegados. Os dois estavam péssimos: tremendo dos pés à cabeça, com os olhos esbugalhados e vermelhos; mas podiam se considerar de sorte, pois não era qualquer um que tinha condições de pagar uma fortuna por mês na melhor clínica de desintoxicação para drogados do país.

O homem se sentou em uma das poltronas da sala, em frente à TV, e gritou: “Enfermeira”. Todos na sala olharam para ele. “Preciso do meu remédio AGORA”. A enfermeira olhou o relógio. “Ainda não está na hora, doutor”, disse ela, calmamente. “Ah, dessa vez a vadia se lembrou do ‘doutor’”, pensou o homem, satisfeito. “Muito bem”, murmurou para si mesmo, e continuou: “Essas pessoas têm que entender que não é porque a minha vida é uma desgraça que eu deixei de ser doutor”.

E de repente o homem se levantou num salto, gritando: “E que ninguém se esqueça disso, entenderam?”. Jogou a caixa de bombons na parede com toda a força e apontou o dedo para um grupo de pacientes à sua direita: “Seus desgraçados, quem vocês pensam que são?”. Deixou o álbum cair no chão, enquanto um forte tremor tomava conta de todo o seu corpo. “Que ninguém se esqueça de quem eu sou! Malditos! Onde estão vocês? Onde estão vocês?”.

A enfermeira se levantou e foi correndo buscar o médico: “Acho que vamos precisar da injeção de novo, doutor".

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/02/2012
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