Dominical

E então o quarto estava todo como que cheio dum incenso que denunciava tudo que ali havia acontecido, ambiente propício para fazer um pernilongo lançar-se insistentemente contra o ventilador barulhento que rodopiava no teto, mas que, apesar de tão ruidoso, não fazia mover o monte de lençóis ao lado dela: a montanha rochosa, a geografia do desastre que se erguia, ao mesmo tempo em que lhe vinha à boca o retrogosto da noite: ferro, como se tivesse mastigado uma chave de roda. Havia a janela e havia também sobre o criado a taça de vinho vazia que em sua face interna estampava uma catedral etílica, secada pelo tempo, como se fora condensada pelo vibrar tortuoso das cordas do violão do velho, dono do motel, e sua mourisca “Recuerdos de La Alhambra”. “Pronto: uma catedral de Miró seria esta, com suas agulhas espetando o céu por onde sobem e descem anjos, levando preces e trazendo mensagens divinas”, pensou. E as gentes saiam e entravam nela num domingo de missa e o padre as bendizia com largo sorriso, iluminado pelo sol roxo próprio das taças de vinho em manhãs de domingo. E todos estavam cobertos por aquele manto de luz, quando alguém se virou e disse: “é o sangue de Cristo que os acompanha”. – Mas ninguém ouviu, pois, como bem profetizou a velha que mora no beco sem saída: “nadie escucha a nadie hoy en dia, hija mia.” Paf - Lá se foi o pernilongo que zuniu a noite toda e o credor saiu sorrindo pela marquise crendo que aquele que jamais o pagaria seria exterminado pela justiça Divina, pois foi sobre isso que o Padre pregara. E as pombas voavam e cagavam alegremente no céu como é normal se ver em taças gastas e riscadas de motéis de beira de estrada, cujos donos são espanhóis que se casam com mulheres chamadas Luzia pelo simples prazer de falar “sia” com a língua entre os dentes. Já o caloteiro, esquerdo que é, saiu também sorrindo, só que pelas laterais, pois o sermão do Padre lhe disse que, se ele tivesse fé, sua dívida seria paga por anjos, seres tais que, agora, sem saber ao certo o que faziam naquele local, se arrastavam amalgamados nas asas furta-cor do pernilongo morto que atravessavam a rua e iam parar do outro lado da taça. A mulher, por sua vez, percebia no reflexo do vidro da copa a única coisa com vida naquela sua face desmaiada: o corte nos lábios, pois “o merda que chamo de ‘meu namorado’ gosta de morder” e suas palavras se misturaram aos sinos que badalavam as onze e ao violão do velho que desafinava gradativamente, como se fosse possível ver as cordas se afrouxarem, ao ritmo em que o tempo e o espaço dilatavam-se, retendo em suas reentrâncias as asas do ventilador e fazendo a catedral se desfazer, como, aliás, é bem comum se ver em taças de vinho ao serem lavadas em pias brancas de banheiros de motel.

“Quer, amor?” – Disse ela, sorridente, oferecendo a taça.

“O ventilador quebrou.” – Balbuciou o homem.

“É o que se tem pra hoje.” – completou, com a boca cheia d'água.

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Inspirado no universo e nas expressões de meu irmão, Eduardo Paixão.

Otto M
Enviado por Otto M em 19/02/2012
Reeditado em 21/02/2012
Código do texto: T3508120
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