Esperança

Vai jogar fora, pai?

- Sim, você me ajuda?

- Vamos lá, Já estava na hora!

- Eu sei...

- Já não agüentava mais isso.

Desde que minha mãe morreu que meu pai cismava em não se livrar da cama. Dormia num tapete do lado, olhando pra cabeceira de sua dormida. Eu não chegava nem perto. O medo de ser contaminado pela morte era intenso. Era como se ainda estivesse ali seu corpo morto. Pra ele não. Aquilo lhe dava algum prazer interno, secreto.

- Por que resolveu se desfazer?

- Porque já estou cansado, quero outra coisa...

- Que bom, pai.

Nunca lavou o lençol azul que lhe cobria o corpo na hora da morte. Vi muitas vezes embrulhado com ele, de pé à cabeça. Assustava em ver uma coisa daquela, um homem se enrolando com a morte. Tanta vida lá fora, tanto sol, os amigos. Os dias se sucedendo.

- Também resolvi pintar o quarto. Não gosto daquela cor.

- Está velha.

- Não é só isso. Ultrapassada e cansada. Quero uma tinta mais clara. Quando morava com minha tia em Brumado, isso quando ainda era menino, a casa dela era toda amarela, e a frente verde. De longe a casa se destacava das outras. Era um brilho morar ali.

Desarmado o estrado, tive dificuldade com a parede do corredor. Ele passou com a cabeçeira e meu irmão rumou para os fundos com os pés da cama. Jogamos tudo no quintal

- Pega o querosene lá dentro...

- Vai colocar fogo?

- Vou...

- Onde está?

- Na cozinha.

- Não prefere dar para os pobres?

- Não existe gente mais pobre que a gente.

- Existe sim, pai...

- Mas prefiro queimar...

- Vou pegar...

- Traz o candeeiro grande, está cheio gás.

Fez um amontoado no terreiro, distante das hortas. Derramamos o querosene e ele riscou o fósforo. A madeira velha e seca trazia medo quando era tomada pelo fogo. Vi os olhos de meu pai chorando. Mas também vi um alívio esvaziar seu peito. Pegou na minha cabeça enquanto admirávamos a quantidade de fumaça que fechava o céu de preto.

- Você vai ali comprar uma tinta alegre?

- Vou sim, pai, vou sim. Cadê o dinheiro?

- Na gaveta da cômoda tem cem cruzeiros. Não demora!

Comprei as tintas, dois baldes, no caminho, andando devagar por causa do peso, olhava com interesse as cores das casas. Vi que quase todas eram pintadas de cores frias. A maioria velha e já descascando, manchadas da chuva. Envelhecidas. Tentava montar em minha cabeça a casa da infância de meu pai. Estava feliz com sua mudança. De querer recomeçar. Pensei ele casando de novo, com outra mulher, que ele amasse tanto quanto gostava de minha mãe...

Passamos o final de semana pintando a casa. Ele foi á loja de seu Hermeto e Trouxe uma cama nova. Via seu entusiasmo. Meu irmão olhava pra mim com cumplicidade. A noite estávamos todos exaustos, cansados, mas um sentimento bom na barriga. Orgulho dele. A casa toda em paz, fim de noite, da janela um pouco aberta, caia um céu na nossa vista. Respirei fundo. Naquela hora estava fazendo muito frio. Precisava dar uma jeito. levantei e peguei atrás do guarda-roupa um pacote enrolado de jornal. Dentro, um lençol azul.

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 29/02/2012
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3527588