Santa Inocência: uma entrevista possível

...Nasci faz vinte e oito anos, aqui mesmo, no Jardim Itatinga. Dizem que é um bairro da periferia da cidade, mas pra mim é uma outra cidade. Aqui tudo é diferente. Os vendedores ficam nas ruas durante o dia e a noite é movimentada, cheia de gente; só pela manhãzinha tudo fica deserto. Eu acho que até gosto daqui, tem posto de saúde, nem precisa ir pro centro de Campinas (*cidade do interior de SP*). Minhas amigas estão aqui, minha vida também. Não dá pra sair.

...Quando fecharam as casas no centro, pra limpar a cidade e aliviar a moral do povo, criaram esse bairro afastado pra elas virem. Engraçado isso, pra eles o que não se vê não existe, mas o ar também não se vê e a gente respira, né? Bom, minha mãe veio pra cá nessa época, trabalhou no Galo de Ouro e morou aqui até morrer, três anos atrás. De Aids. Itatinga quer dizer Pedra Branca, eu sei lá se tinha alguma pedra branca por aqui. Só sei que, quando vou ao centro, não posso dizer que moro no Itatinga, porque aí já vão saber o que faço. É como se meu endereço fosse minha carteira de trabalho.

... É bom saber também que a estrada está perto, mesmo que eu não vá embora. Tem a Dom Pedro e a Bandeirantes (*rodovias estaduais*). Vem muita gente que está de passagem para Indaiatuba, Sorocaba, São Paulo. Gente que pára, fica um pouco e vai embora, nunca mais a gente se cruza. A estrada é como se fosse um rio, a água que passa não volta mais.

... Sim, eu vou ao centro de vez em quando, e gosto. Gosto de circular entre gente de verdade, jovens estudantes, moças de calça comprida e cabelo preso, donas de casa, velhinhos... Pessoas diferentes daquelas que moram no meu bairro. Pouca gente fora da profissão mora aqui; tenho visto cada vez menos plaquinhas escrito “casa de família” na porta.

... Engraçado que hoje uma porção de meninas não fica mais que um ano aqui; elas vêm de longe, fazem um pezinho de meia e vão embora. Ou vão embora piores do que chegaram, também acontece. Acho que cansam, sei lá. Ou percebem que nossa vida é sempre a mesma, seja onde for. Não importa muito o lugar onde a gente esteja.

...Camisinha? O posto dá, mas não muitas. E às vezes os clientes pagam mais se for sem. Compram virgindade também; a Lucinda, por exemplo, engravidou aos catorze de um cara rico do Cambuí que pagou a maior grana pra ela, virgem e sem camisinha. Deu azar, né? Não sei onde ela está hoje, acho que voltou pro Paraná. A gente sempre volta pro lugar de onde veio; acho que é por isso que eu pouco saio.

...Namorado, você diz?... Bom, o Lucas queria casar comigo, sim... Mas ele queria que eu parasse de trabalhar. E na época eu faturava bem, trinta reais por programa, uns cinco por dia, dava coisa de três paus, três paus e meio por mês. (Suspiro). Como eu ia parar? Onde eu ia ganhar isso? Trabalhando em uma fábrica? (Muxoxo). Não tenho segundo grau completo, preferi ficar sozinha. Não é porque não estudei que sou burra.

... Ah, os clientes são caras que ganham salário, mas tem também muitos caminhoneiros e os boyzinhos, que vem de fim de semana e ficam só olhando. Os caras que pagam chegam no final da tarde, depois que saem do trabalho. Sempre dentro do carro, claro. A gente é que vai até eles. Os carros brilham como o sol, e nós somos os planetinhas, orbitando...

... Roupa, a gente tem que colocar pouca, quanto menos melhor. Os caras precisam ver o que estão levando, né? E o legal é que aqui não é que nem no centro, as mulheres de lá não podem exagerar porque vem a polícia e prende, não deixam elas trabalharem. Aqui, não. A gente anda de sainha bem curta e justa, decotões, blusinha transparente; de vez em quando biquini mesmo. Rola até top less. Nem precisa muita maquiagem, não. O melhor é que a polícia nem passa por aqui, estamos protegidas.

... Na minha opinião, a gente é só uma parte disso que os caras chamam de mercantilismo, capitalismo, sei lá: compra quem tem dinheiro, vende quem tem mercadoria. É um negócio como outro qualquer. O mercado do sexo, como falou outro dia o repórter. Os caras pagam, a gente vende. Simples assim. Mas tem que ser tudo combinado antes, o que se oferece e quanto se cobra, pra não ter perrengue depois. Como se diz na loja, não aceitamos reclamações posteriores (risos).

...Eu queria me chamar Matilde. Gosto de Caroline também, mas quando eu era criança queria mesmo era Matilde, que tinha um apelido doce, Tildinha... (Pausa). Mas minha mãe me batizou de Inocência. Por quê? Sei lá porque, era o nome que estava na cabeça dela, acho. Deu no que deu: a Inocência ficou lá, na certidão de nascimento. A outra, a de verdade, nem sei direito o que é, acho até que já nasci sem...

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Este texto, que faz parte do Exercício Criativo "Inocência", é uma entrevista de ficção baseada em capítulo do livro "Corpo e Cidade: uma pequena etnografia da prostituição em Campinas", da arquiteta e urbanista Diana Helene (Unicamp,) de 2008, e também na reportagem do Jornal da Gazeta de 02/02/2010, disponível em: http://www.portalpower.com.br/itatinga/

Veja os outros textos do exercício em: http://encantodasletras.50webs.com/inocencia.htm