NO ESCURO, EU SONHAVA... ORIGINAL

Capítulo 1:

Lugares observam muitas coisas

Minha família sempre foi tão feliz e tão diferente do que ela se tornou agora.

A fazenda era incrível, apesar de ser um tanto velha e afastada da cidade grande, sempre estranhei por qual motivo nos mudamos para este lugar, assim que eu nasci.

Quando era criança, eu, Rebeca, sempre indagava a minha mãe Ruth, porque nós morávamos tão afastados do resto do mundo, apesar de vivermos intensos e maravilhosos momentos juntos, minhas lembranças já estão se esvaindo, uma a uma, já faz tanto tempo que tudo isso aconteceu.

Eu passava horas e horas, brincando com algumas bonecas que eu tinha, perto da lagoa que existia na fazenda do meu pai. Bem, não posso dizer que era uma fazenda, daquelas grandes e ostensivas, como as que passam em filmes preto e branco. Mas era acolhedora, e isso era o que importava realmente para nós, era confortável e tinha muita história escondida nela. Era misteriosa e depois de um tempo se tornou muito sombria para mim, tudo a minha volta me ameaçava.

A fazenda não era muito grande, era rodeada por árvores formando um círculo, no mínimo estranho, a terra era bem fofa, fértil e produtiva, minha mãe e eu sempre plantávamos alguma coisa juntas, nós nos amávamos muito, passávamos horas inteiras no jardim plantando flores, as margaridas eram as minhas preferidas, sempre tão lindas e radiantes. Um dia minha mãe me presenteou com um canteiro inteiro só para mim, disse que eu poderia plantar qualquer coisa, qualquer flor que eu gostasse. E como vocês devem estar imaginando, eu plantei margaridas em todo o meu novo canteiro, achei elas lindas, eu estava realmente muito feliz com o presente, muito emocionada com todo aquele gesto de carinho da parte de minha mãe.

Minha casa era bem humilde, afinal não éramos nem um pouco ricos, ás vezes meu tio, por parte de pai, vinha nos visitar, ele era bem sombrio, quase gélido, tinha um olhar penetrante e esmagador, quando passava por mim, me olhava de um jeito muito estranho, ás vezes eu tinha medo dele, outras vezes tinha apenas uma leve indiferença pela sua presença na minha casa. Ele ficava muito tempo trancado no escritório, junto com meu pai, sempre passava por perto da sala, onde os dois conversavam, mas minha mãe nunca me deixava penetrar na sala, enquanto os dois estavam discutindo sobre assuntos que até hoje eu não sei.

Minha mãe aparentava ter muito medo e receio das visitas periódicas que meu tio fazia a meu pai, eu também, não gostava nem um pouco dele, ora, que tipo de tio, vinha na casa da sobrinha, sem trazer ao menos um presente, mas no fundo eu sabia, que ele não só era mal educado, como também um sujeito muito ruim.

Fora isso, minha infância era muito boa, mesmo com alguns ataques de raiva que meu pai tinha com minha mãe de vez em quando, eu nunca entendia o motivo das brigas dos dois.

Adorava o meu quarto, mesmo sendo bem humilde, ele era bem confortável e do jeitinho que eu queria, as paredes tinham papéis de parede coloridos, lembro que na época foi muito difícil para meu pai, poder comprá-los à vista, tive que insistir por muito tempo, até levar algumas palmadas, que acredito que não merecia, afinal de contas, que criança nunca fez birra.

Minha cama tinha um colchão meio duro, mas minha mãe sempre me dizia que era melhor para a coluna. Minha janela ficava de frente para o poço, na parte de trás da casa, era um poço bem velho, feito de pedra, ainda existia água dentro dele, suja, mas existia.

Eu tinha muito medo daquele poço, sempre tive, era meio obscuro, deve ser porque ele teria uma grande importância no meu futuro.

Minha vida era simples, com algumas turbulências e alguns mistérios, mas era perfeita dentro do possível, pelo menos no meu ponto de vista, ou seja, no ponto de vista de uma criança. Ninguém poderia imaginar que minha vida iria tomar o rumo que tomou, ninguém mesmo.

Adorava as vindas de Jorge na fazenda, ele era contratado do meu pai, para ajudar nos serviços da fazenda, como cuidar do rebanho de vacas que meu pai tinha, das galinhas, do leite, e de algumas plantações, juntamente com meu pai.

Ele era muito engraçado, muito mesmo, não sei por que, mas minha mãe sempre ficava radiante com suas visitas na casa, ela sempre se arrumava mais no dia em que ele vinha nos visitar, lavava o cabelo, secava com um negócio estranho que saia um vento quente, que sempre queimava minha mão quando me arriscava colocar perto minha mão, passava creme de maçã nas pernas e nos braços, usava um pó no rosto que a deixava um tanto mais jovem, não que ela fosse velha, minha mãe sempre dizia que aquilo ajudava a esconder as marcas de expressão, nunca entendi muito bem esse conceito. Passava esmalte vermelho nas unhas dos pés e nas unhas das mãos, banhava seu corpo com um perfume que eu achava insuportável, mas sempre falava que era muito gostoso, pois nunca gostei de magoar ninguém, muito menos minha mãe, que sempre foi tão boa para mim. Não se dando por satisfeita, perfumando só o seu próprio corpo, ela enchia toda a casa com uma essência de lavanda, que era muito cheirosa, eu adorava quando ela fazia isso, nunca entendi bem o motivo de tanta pompa, mas hoje acredito que já tenha descoberto o motivo para tudo isso.

Meu pai nunca gostou de como minha mãe tratava o tal sujeito, tinha pensamentos estranhos a respeito dos dois, que eu mesma só fui entender alguns anos depois.

O grande estopim para a ira incontrolável do meu pai foi esse acontecimento, essa estranha aproximação de minha mãe com Jorge, na época, não dava a mínima importância para isso, mas depois de um tempo fui conseguindo juntar as peças do quebra cabeça muito bem.

Minha irmãzinha era muito linda, tudo aconteceu quando ela ainda era muito pequena, aposto que ela não deve entender nada do que aconteceu com nossa família até hoje.

Eu adorava levá-la para fora, no jardim, para que pudesse apreciar meu canteiro favorito, o mesmo que mamãe tinha me dado de presente quando mais nova, ela também o adorava, assim como eu ela mantinha uma intensa paixão para com as flores, gostava de todos os tipos: rosas, margaridas, orquídeas, crisântemos, lírios, petúnias e outras.

Mas as suas preferidas eram as margaridas, acredito que foi de tanto eu falar com ela sobre as margaridas, para mim as margaridas tinham uma luz especial dentro delas, elas brilhavam, eram lindas, intensamente belas.

Penélope se apaixonou por elas, assim com eu, éramos muito unidas, como todas as irmãs devem ser, amigas.

Penélope, infelizmente tinha um grande defeito, era extremamente desligada, vivia no mundo da lua, não prestava atenção em nada de importante que estava acontecendo com nossa família, o mundo em que nós vivíamos estava desabando em nossas cabeças e ela só pensava em suas bonecas e em mais nada, era muito avoada.

Tempos depois a ficha caiu.

Meu pai estava ficando cada vez mais constrangido com sua esposa, sua raiva começava a ganhar mais intensidade, eu via a hora em que ele acabaria com minha mãe, só com o olhar, ele era realmente muito nervoso, não gostava nem um pouco de ser contrariado, ainda mais se fosse por uma mulher.

Meus pais brigavam constantemente, nossa vida se tornou um verdadeiro inferno com o passar do tempo.

Perdoem-me pelas palavras rabiscadas e mal organizadas neste papel, são apenas reminiscências, nunca tive a oportunidade de estudar adequadamente.

Nesse mesmo momento, eu estou trancada no porão de minha casa, no escuro, com fome e com muito medo, meus olhos ardem toda vez que ele abre a porta, para enviar uma comida nojenta, não suporto mais o odor deste lugar, é insuportável, não consigo mais viver assim, é muito difícil continuar desse jeito, sonhando com tempos melhores, mantendo a fagulha da esperança acesa dentro da minha alma, preciso vencer, preciso continuar acordada, não posso me despedir do mundo assim, eu ainda não vivi nada, minha infância foi roubada, minha vida foi roubada pelo meu próprio pai, e eu nem sei o motivo desse gigantesco ódio que ele insiste em manter por minha causa, não o reconheço mais, ele não pode ter se transformado nesse monstro, não é possível, é tudo tão irreal, não sei mais o que fazer, ás vezes penso em desistir de tudo isso, será que existe um lugar melhor, com certeza, qualquer coisa é menos insuportável do que ficar acorrentada aqui, nesse chão frio e úmido, cheio de urina, com apenas a companhia de um rato nojento, sou apenas uma jovem, uma criança madura em busca de vida, eu tenho sede de viver, mas a única coisa que faço é sonhar, sonhar no escuro, por dias melhores.

Capítulo 2:

Uma longa história.

Rebeca era uma menina muito travessa, gostava de correr para todos os lados, carregando consigo suas adoráveis bonecas de pano, mas no pequeno apartamento que moravam em uma cidade grande, ela não tinha tanta liberdade como deveria.

Seu pai, Horácio, sempre se prontificou para irem morar no campo, mas Ruth sempre reclamava, dizia que preferia a cidade, que ficava mais fácil, mais perto de tudo, melhor para quando Rebeca fosse estudar, embora isso nunca fosse acontecer realmente.

Horácio amava sua mulher loucamente, chegava a manter uma enorme dependência dela, no começo o amor deles chegava até a resplandecer, muitas pessoas conhecidas do casal, chegavam a ter inveja da felicidade e do amor dos dois, Ruth também correspondia a todo esse amor de Horácio, mas com o passar do tempo, as coisas foram ficando complicadas demais.

Horácio perdeu o emprego de operário em uma fábrica de sapatos no centro de sua cidade, vivendo apenas com o salário de Ruth como professora, não dava para continuar ali, os padrões iam cair, com certeza. Foi então que começaram as brigas, tudo era motivo para discórdia, qualquer divergência se tornava uma grande tempestade na vida dos pais da menina Rebeca, nessa época ela era ainda muito pequena, não tinha consciência do que estava acontecendo realmente com seus pais.

Horácio ficava cada vez mais nervoso com a situação em que sua família se encontrava, estava ficando cada vez mais frio com Ruth e com Rebeca.

Numa certa tarde, quando Ruth voltava da escola em que estava dando aula para uma turma de quarta série, ela resolveu comprar algumas roupas novas para sua filha, pois as dela já estavam em frangalhos, foi aí que gerou uma terrível discussão, o começo para as brigas que viriam.

Á noite Rebeca foi até a cozinha sozinha beber um pouco de água, ela estava morta de tanta sede depois de um bom tempo, divertindo-se juntamente com suas bonecas no quarto. Quando adentrou na cozinha, surpreendeu-se com a discussão protagonizada por seus pais.

Já fazia um bom tempo que os dois não falavam assim um com o outro, Rebeca estava chocada com toda aquela situação, não entendia o motivo de tantas brigas!!!

Ela nunca tinha visto seu pai furioso daquele jeito, ele estava muito irado com sua mãe.

- Você não podia ter gastado todo aquele dinheiro, só com roupas para Rebeca, nós temos necessidades maiores do que isso, Ruth! – vociferou Horácio.

- Mas Horácio, ela é nossa filha, precisa se vestir, está em fase de crescimento, suas roupas se perdem muito rápido... – tentava acalmar os ânimos do marido, Ruth.

- Eu sei que ela é nossa filha, Ruth! Mas você tem que impor limite, precisamos de dinheiro sim, e muito mesmo, se quisermos continuar morando nessa casa, temos que economizar, cortar despesas o máximo possível.

- Mas Horácio, o dinheiro é meu e Rebeca estava precisando destas roupas novas.

- Não precisa me jogar isso na cara, toda hora você faz questão de me humilhar com este seu salariozinho que não serve para nada.

- Mas pelo menos, está sendo o sustento da nossa casa, enquanto você está sem emprego, sentando o dia todo neste sofá!!!

O pai de Rebeca ficou tão irado com sua mulher, que lançou uma bofetada bem no rosto de Ruth, que chorou e saiu correndo para o quarto, esbarrando com sua filha que estava acordada no corredor, chorando, com pena de sua mãe.

- Não fique assim, minha pequena, o papai fez sem querer querida, está bem, a mamãe não está chorando mais não... – amenizou Ruth, escondendo o rosto inchado com as mãos.

- Mas mamãe, eu vi, o... pa...pai...acertou a senhora... de verdade, não foi teatrinho, não ma...mãe – disse chorando Rebeca.

- Pode ir se deitar filha, que depois a mamãe vai levar água para você e deitar do seu ladinho, igual quando você era um bebê, está bem?

Depois que Ruth e sua filha foram deitar juntas no quarto da menina, Horácio ficou mais um tempo na cozinha, explodindo de tanta raiva de sua mulher, ele chutou tanto a porta da geladeira, com tamanha força e brutalidade que a quebrou de lado a lado.

Depois desse fatídico ocorrido, o caráter de Horácio mudou completamente para com sua esposa, ele desconfiava de tudo o que ela fazia.

Sempre quando passeavam pela rua, podia notar os olhares furtivos que ela lançava para outros homens e vice-versa.

E os dias foram passando até o chefe de família receber uma grande notícia de seu irmão, que vivia na cidade vizinha.

Hugo ficou sabendo da miserável situação em que seu irmão estava passando juntamente com sua esposa e com sua filha Rebeca. E decidiu ajudá-los.

Hugo não era o melhor irmão do mundo e muito menos o mais honesto, mas na crise em que estavam vivendo, não restava outra solução, Horácio iria aceitar o convite que seu irmão ofereceu a ele, de trabalhar numa fazenda bem afastada da atual cidade em que eles estavam morando.

A fazenda não era muito grande, nem muito bem localizada, mas a terra era muito boa e produtiva, como Hugo garantiu que fosse.

Ruth e Rebeca adoraram a idéia de morar numa fazenda no campo, principalmente Rebeca que era muito chegada em qualquer coisa relativa a campo, a floresta, a jardim, a natureza, a animais e coisas semelhantes.

No começo Ruth ficou meio preocupada e angustiada com a nova moradia, sempre desconfiava das artimanhas criadas por Hugo para subir na vida, Hugo era capaz de tudo.

Ruth, já tinha ficado sabendo de histórias horríveis a respeito de seu cunhado, sabia muito bem qual era a dele, não era flor que se cheirasse, dizia sempre consigo mesma.

E ela tinha toda razão, Hugo não era e nem nunca foi um irmão e tio exemplar, nunca sequer os visitou, estava sempre enrolado com problemas estranhos e endividado com parentes próximos, nunca foi muito próximo de Horácio e nem de sua sobrinha, que visitou apenas no dia de seu nascimento.

Mesmo com uma certa relutância por parte de Ruth, a família acabou se mudando para a fazenda, o novo lar doce lar.

Mas muita história iria rolar naquela casa e naquela fazenda.

No mês seguinte ao telefonema de Hugo, irmão de Horácio, a família já estava pronta para ir morar no campo, Rebeca estava muito entusiasmada, para ela aquilo significava muito mais do quem uma mudança, era uma verdadeira aventura. Crianças estão sempre prontas e dispostas para se aventurar em qualquer mudança ou inovação, ao contrário dos adultos, que se agarram ao passado constantemente, deixando de viver felizes.

Todos entraram na caminhonete, já bem gasta pelo tempo, carregada de lembranças do passado, Rebeca sempre gostou de viajar na caminhonete de seu pai, antes dele ter ficado desempregado, os dois sempre iam juntos ao mercado ou para a escola de caminhonete, Ruth nunca deixou sua filha andar no banco da frente, mas Horácio fazia questão de colocá-la lá, para alegrar a filha e também para contrariar a esposa.

A estrada já ia ficando para trás, Rebeca já não via mais casas e prédios gigantes, conforme o afastamento da cidade, uma pequena vida tinha sido enterrada naquela lembrança, a escola, os amiguinhos, as crianças na praça, os finais de semana no parque, os passeios de caminhonete com Horácio, tudo ficaria para trás de uma vez por todas.

Só restariam lembranças, e lembranças muito boas.

As árvores já começavam a brotar do horizonte, conforme o carro se aproximava da fazenda, milhares de pastagens surgiam do nada, as flores eram lindas, havia muitas espécies diferentes de flores naquelas paisagens, tudo era tão bucólico, tão campestre, havia um cheiro de margarida no ar, os olhos de Rebeca brilhavam a cada nova flor que era apresentada a ela, tudo era tão belo.

Tudo era tão perfeito.

Apenas por um rápido momento, Rebeca tinha se esquecido de como seu pai tinha se tornado amargo e desprezível com sua mãe e com ela própria.

Tinha se esquecido do dia em que seu pai, a empurrou no chão por ela ter queimado sua camisa com o ferro de passar roupas, tinha se esquecido da bofetada dada em sua mãe há algumas semanas atrás, por um momento tudo parecia tão distante, tudo poderia ter ficado no passado, mas infelizmente o destino sempre prega peças em nós.

Os novos moradores tinham chegado à fazenda, ainda era dia, a grama estava mal cuidada, os canteiros todos destruídos pelas pragas e pela falta de água, tudo parecia morto, mas a terra era bem fofa, daria para plantar muitas coisas diferentes, pensou Horácio.

Rebeca saiu do carro muito eufórica, estava louca de tanta excitação, nunca tinha ido num lugar tão diferente como este, nunca tinha sentido a magia da natureza de perto.

A garota foi logo correr em volta das árvores, para ver como eram grandes e antigas. Enquanto Horácio e Ruth tiravam as malas da caminhonete e as descarregavam na casa amarela que existia na fazenda.

Capítulo 3:

Traços de Loucura.

Os anos iam se passando, e as coisas começavam a piorar no relacionamento da família de Rebeca.

Já se fazia um ano que os três se mudaram para a nova casa, Horácio ia ficando cada vez mais frio e intempestivo, surgia uma briga toda vez que algo era feito de um modo que ele não queria ou não gostava. Ruth estava cada vez mais isolada, sempre distraída com seus serviços domésticos desde que Horácio a proibiu de trabalhar na cidade, por dois motivos, o primeiro porque ficava muito longe para ir todos os dias e o segundo por que Horácio estava ficando cada vez mais ciumento, sempre desconfiando da integridade e fidelidade de sua mulher.

A educação de Rebeca estava sendo feita em casa, a própria Ruth estava cuidando disso, tinha livros suficientes para ela aprender muitas coisas, além do mais, Horácio achava que mulher não poderia ser muito instruída como os homens, o importante era saber cozinhar e lavar.

Era isso o que realmente importava para o novo fazendeiro...

Ele estava cada vez mais indiferente com a filha, acreditava que não era sua filha de sangue, não era verdadeira, com o passar do tempo, a relação foi ficando mais complicada entre os três, Rebeca havia crescido um pouco, já começava a clarear os cabelos, de um castanho escuro, começava a brotar fios loiros, mechas já estavam começando a se definir, sem falar nos olhos que eram verdes, sendo que nem Ruth nem Horácio tinham olhos claros.

Horácio ficava cada vez mais desconfiado sobre a paternidade de sua filha, sua mulher não podia ter traído ele dessa maneira, tão suja e tão desleal, pensava Horácio.

A casa já tinha sido toda reformada, graças ao dinheiro que Hugo emprestou para Horácio. As paredes agora estavam pintadas com um tom bem forte e vivo de amarelo, os canteiros estavam abarrotados de tantas flores, Ruth era muito cuidadosa com o jardim e bastante caprichosa com o resto da casa, era uma dona de casa exemplar, ensinava tudo o que tinha aprendido para sua filha.

Horácio já tinha conseguido adquirir com o tempo um pequeno rebanho que dava para seu sustento e para o sustento de toda sua família.

Certa noite, Horácio chegou em casa depois de uma cansativa caça pelos arredores do bosque vizinho a sua propriedade, juntamente com Hugo. Nessa noite Ruth não tinha preparado o jantar, pois tinha tido um dia muito exaustivo, ensinando Rebeca o alfabeto e cuidando da plantação de milho que Horácio tinha idealizado, mas ela não sabia que esse ato ia acabar gerando uma grande discórdia dentro de sua casa com seu marido.

- Ruth! Onde está o meu jantar? Eu não acredito que você não sabe cuidar nem das panelas... Você não serve para nada mesmo... – esbravejou Horácio a Ruth, quando chegou na cozinha.

- Não deu tempo Horácio, tive muitos afazeres hoje na fazenda, enquanto você se divertia com seu irmão no bosque... – se defendeu Ruth.

- Você por acaso está insinuando que eu não faço nada para ajudar nesta casa?

- Não foi isso que eu disse...

- Mas foi o que você pensou sua ingrata!!!

Horácio aparentava estar muito nervoso e atordoado com a esposa, pois pegou uma faca na gaveta do armário e começou a fazer gestos com ela para cima de sua esposa, com um ódio muito grande fluindo em seus olhos.

- Vá para o seu quarto!!! – gritou Ruth desesperada para sua filha Rebeca, que estava espreitando a briga na cozinha.

Rebeca entrou correndo no seu quarto, enfiou a cabeça por baixo dos travesseiros e começou a chorar muito, pois estava com muito medo do que iria acontecer com sua querida mãe. Ela tinha pavor do que o seu pai seria capaz de fazer em momentos como este, de pura raiva, estava ficando cada vez com mais medo de seu pai.

Rebeca fechou os olhos quando começou a ouvir barulhos de bofetadas sendo espalmadas provavelmente no rosto de sua mãe, ela estava com muito pena, mas infelizmente não podia fazer nada, ela era muito frágil, muito indefesa, não era capaz nem de cuidar de si mesma.

Cadeiras pareciam rolar, provavelmente Ruth estava tentando desviar-se da fúria de seu marido, estrondos surgiam a cada segundo que se passava, Rebeca pressionava as mãos com força nos ouvidos, ela não aguentava toda aquela tortura, era demais para ela.

Agora ela conseguia ouvir os gritos de sua mãe lá do seu quarto, gritos abafados pelas mãos grandes e musculosas de Horácio, quanto mais Ruth se esquivava das mãos de Horácio, mais ele se enfurecia com ela.

Rebeca pode ouvir perfeitamente quando a porta do quarto de seu pai foi fechada fortemente, causando muito barulho. De súbito, ela resolveu correr até a cozinha para ver se sua mãe ainda se encontrava lá.

Tomou um susto, quando viu como seu pai tinha deixado sua pobre mãe em frangalhos, não era uma mulher que estava caída no chão da cozinha, era uma vítima de violência doméstica, uma coitada, uma mãe batalhadora que fazia de tudo para proteger sua filha do marido psicótico, uma mulher arrebentada pela brutalidade da vida, espancada e oprimida pelo carrasco que seu marido tinha se transformado com o tempo.

Rebeca chegou chorando perto do colo de sua mãe e a abraçou por longos minutos. Elas ficaram ali, paradas num abraço que poderia durar uma eternidade, nenhuma das duas ousou falar nada, um respeito mútuo de sentimentos, aquela não era uma hora adequada para diálogos, era uma hora de apoio, de sentimento, de amor, puro e simples.

Os dias foram se passando e a vida do casal foi se normalizando pouco a pouco, Rebeca já não mantinha o mesmo medo pelo seu pai, embora ainda se sentisse rejeitada por ele.

As cicatrizes no rosto de Ruth já começavam a desaparecer, ela já conseguia andar sem a ajuda de apoio, os hematomas no pescoço e nas pernas já haviam sumido, tudo já estava voltando ao normal, a não ser por um pequeno detalhe, Ruth estava passando mal constantemente e começara a ganhar alguns quilos.

Estava grávida, era Penélope que estava chegando na fazenda, uma nova criança poderia reacender a chama do casal, poderia fazer com que a alegria reinasse novamente na casa da família de Rebeca.

Rebeca estava ansiosa para a chegada de sua irmãzinha, já estava para completar dez anos quando ela nasceu. Rebeca já não via mais a mesma graça de ficar brincando horas na frente da lagoa com suas bonecas de pano, se sentia muito sozinha, não ia mais à escolinha que estudava quando morava na cidade, pois seu pai fazia questão de que ela terminasse seus estudos em casa, já não gostava mais de correr em volta das árvores como antigamente, sentia a refeição na pele e o que ela ainda não sabia era que as coisas ainda iriam piorar muito.

Em menos de dois anos, parecia que já tinha envelhecido no mínimo dez.

A responsabilidade sobre as costas de Rebeca era muito grande, pois não recebia carinho de seu pai, não convivia com a sociedade, não mantinha contato com outras crianças e sua mãe dependia mais dela do que ela de Ruth, ultimamente, a mãe de Rebeca ficava chorando pelos cantos, sempre que tinha tempo, no resto do dia fazia seus serviços domésticos, por medo de apanhar como da outra vez em que seu marido voltou para casa depois de uma longa caçada com seu irmão. Ela não queria que sua filha ficasse traumatizada por conta desses episódios sinistros, que ela sempre protagonizava, tinha medo dela se assustar, de se fechar para o mundo, tinha medo da depressão.

Penélope foi como um raio de Sol que surgiu do horizonte em direção a vida de Rebeca, ela era linda, sua irmãzinha era muito bonita e muito esperta, mas infelizmente muito diferente de Rebeca, fato este que se achou muito estranho.

Penélope tinha os olhos castanhos escuros e o cabelo preto e encaracolado, muito diferente da aparência de Rebeca, porém, ela era a cara de seu pai, Horácio.

Com o passar do tempo Horácio foi mimando muito sua filha menor, deixando Rebeca totalmente de lado, cabia agora só a Ruth cuidar e olhar sua filha mais velha, seu desenvolvimento nos estudos, suas atividades, seu crescimento e amadurecimento.

Penélope estava cada vez mais ligada ao pai, sentimentalmente. Horácio brincava muito com ela, quase todos os dias, durante o almoço a menina só sentava no colo dele.

Horácio era um pai perfeito para ela, mas infelizmente não era nem sequer um pai para a outra filha, isso deixava Ruth cada vez mais deprimida e angustiada.

As surras e ameaças eram constantes, ainda mais depois da gravidez de Ruth, qualquer coisa servia de desculpa para que Horácio se enfurecesse com ela, com isso Rebeca se afastava cada vez mais do pai e entristecia pela vida que sua mãe estava levando, ela não entendia porque seu pai ficou tão agressivo com o passar dos anos, isso não era normal, será que seu pai era louco? - pensava Rebeca.

O pasto começara a ficar maior e as plantações começavam a se expandir, o trabalho já estava duro demais só para o casal e Rebeca era muito frágil, não conseguia nem arrastar um carrinho com terra.

Horácio cansado das murmurações de sua mulher, resolveu contratar um pião para ajudar com o gado e as terras.

O seu nome era Jorge.

Gabriel de Paiva Fonseca
Enviado por Gabriel de Paiva Fonseca em 24/03/2012
Código do texto: T3572446
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