SOMBRAS DE BOMTEMPO
 
     Aquela música lhe lembrava alguma coisa boa. A voz a fazia se lembrar de sua mãe, a lhe ninar, lembra-se do aconchego de seu lar, ainda criança correndo pela casa, recebendo toda atenção e afeto de seus pais, e de repente, a música transforma-se em uma marcha, forte, passando a lhe trazer lembranças desagradáveis. Ela se vira e vê um desfile de militares vindo em sua direção, passando por ela. Estranha um vagão, ali, naquele local, sem locomotiva. Olha em todas as direções e vê apenas militares alemães.  Seus olhos voltam-se novamente para o vagão e nesse momento nota que alguém desce dele; alguém aparentemente com o pensamento distante. Esse alguém usa um quepe, compondo seu uniforme alemão. Ele olha para os lados e calça sua luva direita. Podia-se ver o ódio em seu semblante, mas podia-se se ver também uma certa satisfação no que estava fazendo. Em seguida tira seu quepe e bate com ele na mão; tem um semblante sério, em seguida sorri e volta-se para ela. Passa a mão pelos escassos cabelos penteados de lado, passa a mão pelo pequeno bigodinho sob o nariz e volta a sorrir para ela. Em seguida lhe acena, faz beicinhos e começa a lhe jogar beijinhos e estende os braços convidando-a a se abraçar com ele. Assustada, ela se senta na cama, transpirando, não sabe se gritou ou não. Já tivera aquele sonho antes. Do dia em que alguém muito especial em sua vida foi traído e entregue aos carrascos que o eliminaram; foi também o dia em que o Marechal Pétain assinou o armistício, na prática a rendição francesa, sob domínio alemão, em 22 de junho de 1940, em Compègne, próxima a Paris, em cujo vagão fora o mesmo usado em 1918 para ser assinada a rendição alemã na primeira grande guerra. Hitler o usara como uma forma de vingança.
 
      Ainda tentando se refazer do susto causado pelo sonho, Annette olha para os lados tentando reconhecer o local. Olha para seu próprio corpo nu, todo molhado pelo suor. Vai até o espelho. Observa seu corpo. Passa a mão sobre seu ombro esquerdo, onde se vê uma tatuagem de duas letras entrelaçadas: “BB”. Lembra-se de seu significado, do dia em que pedira para tatuá-las. Quando conhecera Beni, ele também tinha uma idêntica, tatuada em seu ombro. A mãe de Beni, uma linda espanhola, chegara àquela região ainda muito jovem e se encantara com um belo rapaz sempre muito gentil com ela. Logo tiveram um filho e deram a ele o nome de Beni Bardet. Desde pequeno sempre dera sinais de que teria um futuro promissor, sempre se destacando entre seus colegas no colégio, sem dúvida um líder nato. Ainda muito jovem se interessa pela política filiando-se ao Partido Republicano, também chamado de Partido Radical, na segunda metade da década de 30, tendo por várias vezes se encontrado e conversado com o judeu Léon Blum, líder do partido, e logo em seguida primeiro-ministro francês. Nesta época Beni conhece também uma jovem, linda, jeito doce e educado, porém com atitudes fortes, que acabam conquistando sua simpatia e também seu coração. Era Bernadete Lipphaus  Legrand, filha do francês Vincent Legrand e da alemã Helene Lipphaus. Ambos não acreditavam nessa história de amor à primeira vista, mas sentiram uma atração mútua ente eles assim que se encontraram, sendo impossível conter toda avalanche de sentimentos e prazeres que vieram a seguir. Planejaram, viajaram e lutaram juntos. Sobre a tatuagem Beni dizia significar dias eternos, dias de ouro, valiosos, por serem o melhores que tivera em sua vida, os momentos em que passavam juntos. Bernadete gostava da definição mas vez ou outra insistia “Pra mim pode ser tudo isso, mas também é Beni e Bernadete”, pra sempre. Em 22 de junho de 1940 estavam em Compègne, assistiram de forma discreta todo o teatro armado por Hitler para se sobrepujar e humilhar o povo francês. Ao retornar à pensão a que estavam hospedados, são recebidos por dois militares franceses, acompanhados por um civil.
 
     - Sr Beni Bardet? – pergunta o civil com forte sotaque alemão – Sou Hans Linsenbröder. Vocês vêm comigo.
     Beni puxa Bernadete pra trás de si, a empurra pra fora e grita.
     - Fuja! Não se deixe pegar.
 
     Bernadete corre enquanto Beni impede o avanço dos outros militares. Pouco depois, de longe, ela vê Beni sendo levado. A última vez que o vê com vida. Soube através de alguns contatos, assim que é recrutada a espionar para os ingleses, que Beni morrera nas mãos dos alemães. Bernadete se torna a mais perfeita espiã dos ingleses em solo francês.
 
     Decide então tatuar duas letras em seu ombro, iguais às que Beni tinha. Duas letras entrelaçadas: “BB”. Quando o tatuador comete a indiscrição de perguntar o que significavam, Bernadete, com o pensamento distante, responde sem pensar: Bonanza Bomtempo.
 
      Às vezes quando pensava em vingança imaginava ser impossível diante de todo o conflito e dificuldades, sem apoio... até ter conhecimento da próxima missão. Poderia ter sua chance...
 
     Annete volta a se ver no espelho. Não tinha tempo a perder agora com lembranças, ainda que tão fortes. Acha melhor tomar um banho e se preparar para sua próxima missão. Teriam que partir apenas no dia seguinte, mas havia alguns preparativos que deveriam ser providenciados.
 

 
 


Walter Peixoto – fevereiro/2012
 

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Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 06/04/2012
Reeditado em 29/04/2012
Código do texto: T3597634
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