O eterno instante de Anna Ippolitov

Anna é invadida por elucubrações intensas e larga-se sobre uma poltrona em um canto escuro da sala de estar. Sob o auspício do silêncio retumbante ouve-se o ranger tenso de seu maxilar e o barulho irritante de seus dedos a cutucar a superfície de um móvel de cantoneira em cujo centro assenta-se um abajur a meia luz. São duas horas da manhã e o apartamento de Ipanema, antigo imóvel herdado dos pais, agora, mais imóvel que nunca, abriga resignadamente os turbulentos pensamentos, os estridentes gritos esporádicos e as longas ausências sonoras de Anna, como abrigava sua euforia de outrora, dos tempos de infância e adolescência, do sorriso autêntico que ecoava lampeiro lotando os espaços vazios e contagiando a todos da família. O imóvel e Anna mantinham agora uma relação de intensa co-dependência. Ele (o apartamento) jamais a abandonou. Continua a dar-lhe abrigo. Anna habita seu interior, é parte dele. Mas não mais o sente como um útero protetor e provedor. Estabeleceu uma relação parasitária. Ela suga-lhe o brilho, rouba-lhe a luz, impôe-lhe a sombra, fecha-lhe as cortinas impedindo que o sol o penetre e o livre dos microorganismos que provocam bolor e o destroem lentamente. Anna tornara-se um verme lânguido de seu imóvel.

- Tenho a sensação que entrei em uma montanha russa e não posso parar o maldito brinquedo, dependo de um outro alguém para que o faça por mim. Fui igualmente lançada na vida. Nasci. Da mesma forma dependo Alguém para que cesse meu viver. Sinto-me enjoada, preciso me transformar, parar o ar, preciso descer de minha condição, mudar a forma, morrer. - Seu Alguém! Seu Alguém! Grita Anna, aos prantos, pois não consegue mais nomear Deus. - Para esse jogo de viver. Pai, onde você está? Por que me esqueceu?

Anna é só lamento, mas não fora sempre assim.

O pai de Anna era um homem longilínio, de feições delicadas e gestos seguros. Um homem sábio, culto, apaixonado pela vida, cujo passatempo predileto, dentre outros como ouvir música e dançar, era tocar, sentir, ler e catalogar livros em sua biblioteca particular. Aliás, que seja dito, uma das peças mais bonitas do apartamento. Sr. Kurkov, como era chamado, era dotado de um admirável senso estético. Havia três paredes cobertas por uma estante de madeira de jacarandá com prateleiras grossas dispostas harmonicamente, algumas envidraçadas. Na quarta parede, podia-se avistar um relógio pedestal Carrilhão alemão de 1,90m de altura que pertencia a família desde a década de 30 e fora cuidadosamente preservado pelos Ippolitov. Sua toada fazia parte da existência de Anna. Soava como música para seus ouvidos. O acervo de livros era enorme e diversificado. Observava-se especial apresso pela literatura russa representada principalmente por Tolstoi em sua obra magnífica: Guerra e Paz, cuja edição em russo fora herdada de seu pai e Dostoievisk. Tendo deste último, a primeira edição traduzida para o português de: Crime e Castigo, O idiota e Os irmãos Karamasov. Também Nicolai Gogol tinha seu lugar na estante e na alma de Sr. Kurkov. Infelizmente quando de sua morte ainda não conseguira adquirir a obra : A briga entre os dois Ivans, que tanto procurava.

Seu pai era filho de imigrantes russos que haviam fugido do regime Stalinista no final dos anos 30. Suas safras agrícolas foram tomadas por Stalin e sua crença em Deus ameaçada pelo novo regime. Partir tornara-se uma necessidade, não uma escolha. Quando chegaram ao Sul do Brasil, em uma aventura que envolveu a China e que foi exaustivamente contada pela família durante esses anos todos, Sr. Kurkov tinha apenas dois anos de idade. Era o filho mais velho dentre quatro irmãos nascidos mais tarde no Brasil.

Anna se alimentava da história contada pelos avós e depois pelo pai, que costumava atribuir ainda mais força e determinação á luta dos imigrantes, como se fosse possível maior admiração por seus feitos. Induzia Anna a imaginar as cenas e ia descrevendo calma e detalhadamente o drama:

- Saímos da Sibéria, passamos pela China clandestinamente, porque o número de vistos para saída legal estava esgotado, esperamos o rio Amur congelar durante o inverno para atravessar sobre ele de trenó. Seguimos para a África, canal de Suez, Estreito de Gibraltar, França e finalmente, desembarcamos no porto do Rio de Janeiro onde fomos obrigados a ficar de quarentena na Ilha das Flores, para evitar possíveis transmissões de doenças. Depois deste período, seguimos em outro navio para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e de carroça fomos até a pequena cidade de Riquezas. O local destinado para nos receber era totalmente hostil, repleto de mato fechado e calor intenso, a terra não estava preparada ao cultivo, não falávamos a Língua Portuguesa, muitas dificuldades havia pela frente. O medo e a esperança eram nossos principais companheiros.

Anna lembrava-se desta história e podia agora sentir o medo assustador de estar só. O medo do nada, do vazio, do não sentido. Não conseguia experimentar a tão falada esperança ao seu lado. Companheira das horas de abandono? Quanta mentira! Só medo, medo... Como podia ser tão covarde, pertencendo a uma família de pessoas destemidas e aguerridas que em nome do que acreditavam eram capazes literalmente de percorrer o mundo em busca de seus ideais. Anna percebeu-se, totalmente, sem ideais, sem idéias, só id.

Arrastou-se até a cozinha preparou uma dose de vodka, velho hábito de final de semana, depois, retornou para onde estava depositado seu corpo minutos antes. Um corpo que parecia extremamente pesado, denso, nevrálgico e dolorido. Um “algo” que precisava carregar até que o “Alguém” lhe permitisse abandoná-lo. Um corpo tão parado quanto o Carrilhão da família que há dez anos marcava 18h. Por um instante, porém, em um breve devaneio, pensou ouvir a flauta doce de Anita, sua mãe.

- Ah que saudade! Suspirou. Anita era uma artista plástica simplesmente deslumbrante e uma musicista talentosa. Pintava sempre a temática do movimento. As texturas, as cores, as matizes, o jogo de luz e sobra que compunham o movimento da vida. Anna herdara seu dom artístico, tornara-se bailarina.

Anita era uma jovem com raro fulgor no olhar e encantamento pela vida. Certo dia, pesquisando sobre a expressão de movimento na dança em diferentes culturas, perpetuou a magia do seu instante de viver. Em um espetáculo de música sobre o folclore russo, interpretado por um cantor nativo de fama mundial, viu Kurkov pela primeira vez. O encontro deles, porém, não se deu conforme a previsível lógica do amor eterno e romântico preconizado pelo Ocidente. Não houve a tradicional “flechada do cupido” que contagia os amantes de tal modo e tanto que faz com o mundo seja e tenha “restos”. Os restos de afetos que alimentam a miséria alheia dos mal amados. Tudo que sobra de um intenso amor à primeira vista. Não. O primeiro contato de Anita e Kurkov foi inteiro ou melhor, suficiente para alimentar os dois naquele hibernal instante, sem sobras, sem restos, sem excedentes. O desejo de reencontrarem-se novamente não surgiu da falta ou da escassez, nem tão pouco do excesso e sim da plenitude da semelhança, da liberdade entre os iguais. Não precisavam se completar, posto que eram inteiros. Possuíam o mesmo entusiasmo, vitalidade e paixão pelo ritmo, pelo movimento, pela sabedoria. Paixão. Um instante que durou uma vida. Anna foi gerada naquele instante, dois anos depois, ou antes, mas naquele instante.

No entanto, no mesmo instante, vinte e cinco anos adiante, o relógio do tempo de Anna parou. Foi quando o Carrilhão marcou 18h pela derradeira vez. Aquele instante não lhe saia do pensamento, sequer havia sido lançado no passado de seu momento, de seu movimento, era presente, presença eterna, domínio, possessão, morte em vida ou vida em morte. Era o dia de sua estréia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro na companhia de Storojkov, seu mestre nascido na Rússia onde foi bailarino no Teatro Ópera de Ballet Novosibirsk dançando nas perfomances de Grigorovich, Vinogradov, e tantos outros mestres. Anita e Kurkov eram só contentamento. Anna sempre fora motivo de orgulho, mas desta vez Kurkov e Anita não podiam conter-se de tanta emoção. Sua única filha, herdeira do amor e do entusiasmo de seus pais, seguia seus passos sem temor.

- Eu poderia morrer agora! Exclamou Kurkov, sentado ao lado de Anna, que dirigia o veículo em velocidade inadequada para pista molhada pela chuva, sem que percebessem em função da euforia plena dos três. Então naquele (este) instante, um carro que vinha do outro lado do cruzamento, com um jovem de apenas 18 anos de idade cruzou o sinal vermelho e colidiu direto no carro de Anna, exatamente na porta ao lado de seu pai. Atrás, estava Anita.

Na poltrona do apartamento em Ipanema, está o “resto” de Anna, da cintura para cima, sem movimento nas pernas, sem movimento na vida, sem alma, sem esperança, sem fé em Ninguém...

No fim, todo grande amor deixa restos...

Marta Klumb Rabelo
Enviado por Marta Klumb Rabelo em 20/07/2005
Código do texto: T36057