Cap. 3

Era manhã e amanhecera com um brilho suave de sol. Um "bom dia", baixinho aos meus ouvidos e um beijo no rosto despertou-me num dia de sábado. Ela havia acordado duas horas antes e preparado o café. Eu sentia, desde o seu "bom dia" que, apesar do dia claro, uma camada acinzentada revestia minha rotina e sentia gelar meu estômago algumas vezes. Nunca havia sentido essas reações.

Bárbara sempre saía mais cedo e, nesse dia, ela estava radiante.

- Hoje acordei tão bem. Com uma vontade de dançar, de dizer que a vida vale a pena ser vivida, principalmente ao lado da pessoa que amo.

Não sei. Estranhei deveras. Percebi que nessa felicidade que brotava da sua alma desprendia uma atmosfera de despedida. Ao sair e fechar a porta senti saudades, aquele sentimento suave e triste de quem ama um objeto ausente.

Essa foi a última imagem que guardei da Bárbara viva. Ela estava grávida de dois meses. Guardara segredo.

Pouco tempo depois de fechado a porta. Ouvi dois disparos de revólver. Senti em mim um deles, o outro acertou a parede do prédio. Estava lá a marca. Uma punhalada forte no peito esquerdo. Olhei. Um buraquinho fino como um dedo escorrendo, como lágrimas, o rubro sangue. Desci correndo as escadas. Ela estava um passo diante da porta da entrada do prédio, deitada no chão. Sem pulso. Sem respiração. Seu calor - aquele mesmo calor que se transformava em erupções vulcânicas nas nossas noites de amor - estava cedendo a uma frieza comum aos mortos, com ele uma faixa escura ia cobrindo seu corpo lentamente e arroxeando seus doces lábios. Seus olhos abertos fixaram num ponto distante. Perdido. Talvez guardasse na sua retina a imagem do suposto assassino. E, sua boca entreaberta, exprimia o susto do impacto do tiro no peito adentrar o coração e paralizá-lo num último suspiro.

Aquela cena me adentrou violentamente. Meu corpo não obedecia meus sentidos. Mesmo chocado, não chorei. Doía realmente em mim. Era para faltar-me a razão das coisas e desesperar-me. Vi devagar o sangue escorrer. Escorria, também, para fora de mim qualquer sentimento e questionei o culpado. Claro... o culpado de tudo é Deus. A vida, não a pedi, foi ele quem me deu. E há quem diga ser dádiva. Também não pedi alguém para amar e me pôs Bárbara para dividir dois anos de vida comigo e, violentamente, arrancá-la de mim. No melhor momento de nossas vidas.

Não a tenho mais.

Houveram questionamentos que brotaram em mim como a um anátema puto de raiva com Deus. E o reconheci como um carrasco ao invés de Pai. Ofereceu-me a maior das felicidades. Fez-me experimentar o amor puro e depois o arrancou. Sem dó. Ele que é o Senhor da vida e da morte.

Foi a vontade dele. Então, qual seria minha culpa, a minha tão grande culpa? Amar demais? Amar uma pessoa bem mais que a Deus? Aprendi em aulas de catequese que se deve amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Foi nisso que errei, talvez. Mas se foi um erro meu, porque eu não paguei com a morte e, sim, Bárbara? As aulas de catequese respondiam-me vagamente: "O sofrimento é maior para os que ficam e aos que partem recebem festa no céu". E fiquei mais puto de raiva com o culpado que encontrei. Deus sempre é o culpado. Se não existisse Deus, quem eu culparia?

Até hoje não souberam quem a matou. Suspeitaram até de mim. Fui inúmeras vezes a interrogatórios com o delegado, dr. Aquiles.

Minha filha que não nasceu, chamava-se Maristela.

Tenho uma filha que nunca a vi. Nunca troquei sua frauda ou limpei seu cocô. Não acompanhei sua gestação. Não sei se parecia mais comigo ou com sua mãe. Maristela era minha filha. Uma estrelinha cadente que caiu no mar e apagou-se.

Walter Welington
Enviado por Walter Welington em 27/01/2007
Reeditado em 05/04/2007
Código do texto: T360675
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.