O FANTASMA
 
 
A noite estava escura, feito breu. A chuvinha fina que caía, desde a manhã, estendeu-se noite adentro, trazendo com ela o frio de inverno. Sentada diante da lareira ela tomava sua segunda taça de vinho tinto. Precisava aquecer-se daquele gelo que castigava suas entranhas. Pensava nele, como sempre. Mesmo após dez anos de sua partida, um dia sequer não passava sem que sua lembrança estivesse presente. Ele estava nos móveis da sala, no quarto, nas flores do minúsculo jardim que havia cultivado em uma jardineira, cuidadosamente apoiada na janela da sala.
 
Sua imagem refletida na tela apagada da TV mostrava as linhas de seu rosto. Ainda era muito bonita, mas percebia que já não tinha o mesmo brilho nos olhos e sua face, marcada pelos desgostos, mostrava-se cansada e com aspecto envelhecido. Ela sentia muito a falta de seu marido, com o qual passara mais de quinze anos felizes e sós.
 
Não tiveram filhos, por comum acordo. Viviam afastados de tudo e de todos, nos últimos anos, tendo por companhia apenas a presença daquele amor de cumplicidade. Mas ele partira, deixando-a com suas lembranças e a solidão, hoje, a sua maior cúmplice. Aconchegou-se na poltrona reclinável, ajeitou o cobertor no peito e adormeceu. Era chegada a hora. O único momento em que ela não se deixava massacrar pela solidão de seus dias.
 
Ele veio, como todas as noites. Ela sentiu o afago de suas mãos, passeando por seu corpo e o beijo depositado em seus lábios, aquecendo-a do frio que fazia naquela noite - escura como breu.
 
Aquelas visitas noturnas eram sua razão de viver, desde que ele se fora, há exatos dez anos. Antes de partir, ele fizera-lhe uma promessa. Viria sempre compartilhar de sua solidão. Como um fantasma do bem, ele não haveria de deixá-la só, jamais!  
 
 
(Milla Pereira)
 
 
Este texto faz parte do EC
“O Fantasma”
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