Mais que um corpo estraçalhado no asfalto
Um vento. Um rodopio, diria. Um sopro como que um leve toque da mão de uma criança. Um sono. Sabe quando ocorre um cochilar? Quando a cabeça despenca e você por impulso dá um puxão para cima? Foi isso. Um cochilar... E um vento. Tudo ao mesmo tempo. Uma luz, um azul e branco. Um ônibus, creio. O vento do ônibus, talvez. Um susto e aquele azul e branco que chegavam tão depressa. Quis falar com ele. Mas a inércia do giro do capacete não me ajudava ali. Uma liberdade tão grande. Liberdade maior que aquela da viagem de moto. Era um ônibus, sim. Aquele azul e branco do ônibus quando a moto derrapou. Deslizamos como sobre o gelo. Como naquela viagem para Nova York doze anos antes. Mas em 1992 era neve, agora era uma língua áspera do asfalto que tentava segurar meu movimento à custa de minha carne. Tão frágil carne enquanto seguia em uma tão grande liberdade. Levada por um rodopio, puxado como que pela mão de uma criança. Talvez fosse só isso ou talvez fosse muito mais e não tivesse tempo de apreender o que ocorria. Era doce o tempo em que te conhecia. Na verdade, todo o tempo anterior a hoje era doce. Queria cochilar nem que por um segundo e perder a consciência da agressão do asfalto sobre meu corpo. Não só sobre meu corpo, mas sobre meu eu. Um chiado e um som de pancada. E fui despertado do cochilo que durara menos de um segundo. Logo, por tempo insuficiente para me poupar da certeza da dor. Como quando uma criança tivesse soltado meu corpo... E parei o rodopio. Quando o vento que sentia agora era menos que um aroma de terra molhada. Quando a tensão, que por reflexo meu corpo executava na tentativa de me proteger de talvez um eterno cochilo, cedeu, eu vi que o azul e o branco passavam e seguiam. E meu eu não se localizava em um local bem definido. Estava espalhado entre um distante passado e um futuro que nunca chegaria. Nunca mais pude vê-lo.