UM CAFÉ, UMA PROSA
 
          Certa vez, quando ainda jovem, com pouco mais de vinte anos, estava eu em uma cidade vizinha, distante 140 km, já passava das sete horas da manhã, e decidira tomar um café. Não tenho por hábito comer muito, mas não dispenso um bom cafezinho feito na hora. Era um dia de domingo e fora convidado pra um batizado de um primo, sendo que passaria o dia no sítio desta família onde todos estariam reunidos em festa. Eu havia levantado bem cedo, o sol ainda não havia despontado no horizonte quando iniciei viagem a essa cidade.

          Ao chegar a São Roque, cidade do batizado, segui direto à praça da igreja matriz. O batizado estava marcado para as nove e trinta, depois da missa, mas eu não sabia chegar ao sítio. Havia estado nesse sítio há muitos anos atrás, quando ainda era um garoto e nunca mais havia retornado ali. Sempre que me encontrava com os primos era na casa de outro tio, já falecido há pouco tempo, que morava na cidade. Resolvi então esperá-los para assistir a missa juntos.

          Após estacionar olho pros lados procurando onde poderia tomar um bom café. Vejo uma lanchonete onde se lia: café expresso. Ótimo – pensei eu – não é aquele caseiro passado num coador de pano, mas serve muito bem. E lá fui.

          Pergunto pelo preço e o atendente me informa o preço cinco vezes maior que o de costume. Acho caro, mas resolvo tomar assim mesmo. Contrariando meus hábitos, peço também uma fatia de bolo.

          Pouco depois entra um senhor de aparentemente sessenta anos de idade, semblante já meio castigado pela vida, olha em volta e se dirige ao atendente perguntando pelo preço do café.

          Este lhe responde. O senhor abaixa a cabeça, pensa e diz:
          - Hum...  Não tenho tanto. O senhor não tem um mais simples? É que se eu não tomo café, sinto muita dor de cabeça, é como um vício pra mim.
          - Não, não... – responde o atendente – O senhor pode ir até a rodoviária, a umas quatro quadras pra baixo. Lá o café é mais barato.
          - Já venho de lá, moço. Houve um problema lá que só vão fornecer café à tarde.

          O senhor, com as mãos apoiadas no balcão olha pra baixo, dá meia volta e se dirige à saída. Ao chegar à porta, enfia a mão no bolso, tira algumas moedas, conta-as e volta.

          - Moço... Tenho apenas a metade. O senhor não venderia “meio café” pra mim?

          Neste momento eu intervenho, antes que o atendente responda.
          - Pode servir um café direito pra esse senhor, por minha conta.

          O atendente me olha com ar de desânimo. Meio a contragosto começa a preparar um café expresso. Com um certo constrangimento o senhor me agradece sem recusar a oferta, e eu percebendo a posição em que se encontrava procurei amenizar as coisas. Ele se parecia muito com meu pai, com seu jeito de andar, seu jeito de falar, talvez fosse isso que me fizesse intervir.

          - Me desculpe, mas o senhor me parece familiar, sinto como se o conhecesse. O senhor mora por aqui?
          - Não, não. Estou apenas de passagem – diz, se aprumando e arrumando a calça com os punhos.

          Ansioso, ele olha para a cafeteira que parecia trabalhar vagarosamente. Quanto mais o observava, mais o achava parecido com meu pai. Eu olho em direção à porta e vejo uma senhora aguardando.

          - Aquela senhora, ali...
          - Ah, sim. É minha esposa – diz ele se virando.
          - Neste caso talvez ela queira também tomar um café com o senhor.
          - Não, não se incomode, a gente...
          - De forma alguma. Chame-a aqui – e me virando pro atendente –           Amigo, faça mais um cafezinho pra essa senhora.

          Ele me olha como se eu fosse o maior otário do mundo, que estivesse caindo em mais um conto do vigário. Não me importando com isso, ou talvez por isso, completo:
          - E sirva também a gente de mais deste bolo aqui.

          Pouco depois, já tomando o café, aí sim digo meu nome, ele se apresenta como João Francisco e em seguida apresenta sua esposa, como esposa, sem dizer o nome dela.
          Eles pareciam com fome. Comem o bolo, concentrados, sem nada dizerem.

          Pouco depois ela rompe o silêncio.
          - Bom, acho que vou até a igreja.
          - Eu vou ficar por aqui – responde o Sr. João.

          Ela sai e o silêncio continua. Eu fico observando aquele homem comendo o bolo e tomando café como se fosse o último que tomaria na vida. Normalmente não daria atenção a estranhos; sou arredio, sempre fui. Nunca me importei com outras pessoas. Poderiam estar famintas, doentes, até mesmo caídas, sem assistência. Nunca me sensibilizei com isso. Eram problemas deles. No meu entender se estavam assim deveria existir uma razão, e sempre tive a certeza que a culpa não era minha, mas deles mesmo. Mas, ali, naquele dia, diante daquele senhor, havia algo nele que me cativava. Me sentia a vontade do lado dele, como se fossemos amigos de longa data. Quando termina seu café, eu puxo assunto rompendo novamente o silêncio.

          - Então, ‘Seu’ João? O senhor mora por aqui ou está apenas de passagem.
          - Eu estou de passagem, mas já tive um sítio aqui perto. Isso já faz algum tempo.

          Enquanto fala, ele tira do bolso um pedaço de fumo de corda, saca seu canivete que trazia pendurado no cinto e começa a picá-lo pra fazer um cigarro de palha. Olho pro atendente da cafeteria e ele está observando, pronto a nos expulsar dali, caso o cigarro fosse acendido ali dentro. Foi então que o chamei pra irmos pra praça, logo em frente.

          Já sentados no banco da praça, percebo que ele não enxergava direito e cortava o fumo mais pelo tato e experiência, e vez ou outra “firmava a vista”, tentando corrigir alguma fatia mal cortada. Novamente eu interfiro e peço pra cortar o fumo. Gostava desse “serviço” e sempre o fazia de bom grado quando meu pai queria fumar. Enquanto eu trabalhava, ele ia contando sua história. Não demora muito e entrego a ele um legítimo cigarro de palha, enrolado e pronto pra ‘pitar’. Ele pega e examina, aprovando, tira uma binga do bolso, daquelas de querosene e pavio, muito usado antigamente. “Quanto tempo não vejo uma dessa” – penso eu. Coloca o cigarro na boca e colocando fogo na outra ponta, o vai girando e puxando a fumaça até que este esteja bem aceso. Sinto aquele cheiro, um tanto familiar. Por um instante volto no tempo, onde estamos eu e meu pai, pescando, vez ou outra ele dava uma esbaforida de fumaça em minha direção espantando as mutucas e outros insetos que nos perturbavam.

          - Então, como tava dizendo – diz ele me tirando de minhas lembranças – meu sítio ficava a uns cinco quilômetros daqui, nesta direção – diz apontando pro sul – Comprei ali ainda muito jovem, recém casado. Fomos muito felizes ali. Mas apesar das dificuldades, ainda somos felizes até hoje. Nunca negamos nada a quem passasse por ali necessitando de alguma coisa. Fosse quem fosse! Essas coisas não se nega a ninguém – e me olhando com os olhos lacrimejando – Por isso fiquei comovido com sua atitude hoje.

          Foi minha vez de dar um sorriso amarelo. Nunca havia feito aquilo. E se havia feito com ele, foi num impulso de momento, pela semelhança com meu pai. Obviamente não disse nada. Ele continuou:

          - Eu desejo que você continue sendo generoso. Mas nunca deixe que o enganem, eu sei, é difícil conciliar as duas coisas, mas é possível. Você ainda vai ser muito feliz, rapaz. Não há mal que dure pra sempre, e você vai superar todos os obstáculos de sua vida. Eu vejo isso!

          Não sei como ele soube que eu não atravessava um bom momento em minha vida. Novamente apenas assenti levemente com a cabeça.

          Neste momento a esposa dele se aproxima, retornando da igreja.
          - Está na hora, meu velho. Vamos indo?
          - Sim. Vamos.

          Ele olha pra mim.
          - Muito agradecido, meu rapaz. Não se esqueça do que eu disse.

          Ele procura algo no bolso. Encontra uma velha fotografia. Enquanto a coloca no meu bolso da camisa, diz:
          - Não tenho nada de valor pra recompensá-lo. Esta é apenas uma lembrança nossa. Não tem valor algum, mas é tudo que tenho.

          Vou pegar pra dar uma olhada e sou interrompido pela senhora, que pra minha surpresa me dá um abraço.
          - Muito obrigada, rapaz! Você foi muito gentil conosco.
          Ele também me abraça. Despedem-se e vão embora.

          Eu fico ali, com a sensação de ter perdido alguma coisa. Não consigo atinar o quê. Gostaria de conversar mais, saber mais sobre eles.

          Já haviam virado a esquina quando atinei pra fotografia. Busco-a em meu bolso. Era uma fotografia antiga, estando os dois em frente da casa no sítio, sorrindo pra câmera. Como ele se parecia com meu pai. Ela também agora me parecia familiar. O sítio me parecia familiar. Já havia estado ali quando criança. “Sim, o sítio de meus primos”. Fico um pouco aturdido por algum tempo, tentando coordenar os pensamentos. Sou interrompido com a chegada de um dos primos pra missa. Passada a euforia do reencontro decido mostrar a fotografia.

          - Ora, que interessante – diz ele – Você tem uma foto antiga do nosso sítio... Não conhecia essa fotografia. Onde arrumou?
          - Ganhei... – ia dizer como, mas no último momento, preferi me calar por enquanto.

          - De algum parente? Esses são nossos avós. Você não chegou a conhecê-los. Já eram falecidos quando você nasceu. Mas eu me lembro deles. Vô João Francisco e Vó Etelvina. Eu era um garoto quando eles faleceram, e me lembro muito bem.

          Fico mais aturdido ainda. Pergunto:
          - Pra onde fica o sítio de vocês mesmo?
          - A uns cinco quilômetros ao sul da cidade. Você vai ver. É perto. Mas vamos pra missa que tá na hora. Depois a gente conversa direito. Temos a tarde toda.

          Pego de volta a fotografia e a coloco no bolso. Pensativo se conto o inusitado encontro ou não. Assistiria a missa e depois tomaria uma decisão do que fazer. Lá fomos nós, em direção à igreja.
 



Walter Peixoto
03/05/2012






Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 23/05/2012
Código do texto: T3683296
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