Catálogo de insectos

“Muitos, muitos. Biomassa imensa de mundos de vida em frenesim. Mal reparamos. Formam sociedades paralelas fundamentais para a nossa subsistência mas raramente damos por eles. Quando dedicamos a nossa atenção a esses seres é geralmente com intenções bem pouco amigáveis.”

CASA DE LUCIANA, DIA UM

É um facto: o cabelo longo ondulado de Sheila exige atenção diária, por vezes mais cuidados do que as minhas forças e disposição permitem. Felizmente Ludmira, a mais velha tem já onze anos e vai ajudando no que pode. Ao sentir-me cansada, chega-se ao pé em silêncio, o corpo esguio e pouco firme como se fosse vara de canavial largada sem apoio, dançando ao sabor do vento. De nariz afilado e olhos fundos, olha-me um olhar leve e só aparentemente descontraído. Diz baixinho e com voz doce: “Deixa comigo mãe, eu cuido agora”. Depois, lava e passa o sabão, os cremes e a escova. Sei, isso liberta-me, que entrançará com cautela e de forma muito eficaz; posso enfim respirar um pouco, ir lá fora sentar-me na soleira da porta a organizar os pensamentos enquanto no entardecer a luz do dia se esvai devagar para ceder vez à noite. Depois venho para dentro, para a cave. Quinze, vinte minutos mais. Enquanto elas brincam a comida estará pronta.

Não temos cozinha – são apenas duas divisões pequenas e escuras: a que serve de casa de banho e a outra, que nos assiste a tudo, onde temos a bancada e o esquentador e a cama e a televisão. Após o jantar, Lu faz os trabalhos e sentamo-nos juntas a ver um pouco de TV. Hora e meia depois e já estamos as quatro a dormir: Lu grande, Lu pequena, Sheila e Margarida. Margarida é uma boneca de pano um pouco pateta, gorda e com tranças loiras. Possui um meio-redondo de sorriso e um par de rosetas encarnadas. Sheila abraça-a, dá-lhe muitos beijos, chama-lhe “Madida”, “minha Madida”. Não vai a lado nenhum sem ela.

Nem tudo é sempre mau ou monótono. Tenho a folga em dia fixo e com a Primavera vêm os Domingos grandes com tardes cheias de luz. Saímos cedo para apanhar o “Cinquenta e três” ou o “Quarenta e nove” e em menos de vinte minutos estamos no Restelo. Passamos a manhã por lá, passeando, brincando, percorrendo caminho à beira do Tejo.

Ao fim do dia voltamos sem queixas para a casa que não é nenhum palácio. Já houve tempos melhores e tempos piores, habituámo-nos.

Sou Luciana e estou neste país há quatro anos, dois meses e três dias. Tenho um punhado de conhecidos (uma boa parte deles são colegas) e um ou dois amigos. Jornalista por formação, não exerço.

A ESCOLA

Lembro-me ainda das casas de aldeia pequenas e pitorescas, a frase “Escola Primária” gravada em baixo relevo, letras garrafais, mesmo por cima da porta, da entrada principal. Tinham paredes caiadas de branco e um revestimento a telha vermelha, portuguesa. No interior das salas de aula encontrávamos os bancos de madeira, o quadro preto grande de lousa e o ponteiro. E os paus de giz. E as secretárias tradicionais.

Pois é, isso era o passado, isso é o tradicional. O que chamam aqui de escola, a “Escola C+S Luís de Camões” é algo muito diferente. Situa-se junto à estação de comboios, nuns baldios que por ali havia à beira-rio. Todos os dias o parque de estacionamento fica atulhado com os automóveis de papás e mamãs apressados (centenas) que vêm trazer as crianças para o grupo de barracões. Tribo urbana perfazendo repetição de ritual de rotina. Fazer de sempre fazer, emprestar e recolher de significado. É uma merda (desculpem-me a expressão) – demasiado frio, frio e chuva no Inverno, na Primavera é invasão dos mosquitos e a secura - um calor que não se pode! Disseram os que sabem que eram infra-estruturas temporárias, que logo, logo iriam fazer outras. Esperámos. Agora dizem que o projecto está quase concluído, que é para breve. O certo é que já estando aqui há algum tempo (quatro anos passados como Porteiro desta coisa), andam de trás para a frente e frente para trás e a gente não vê nada, nenhuma evolução. Não é querer ser ave de mau agoiro mas quer-se-me querer que ainda terminarão primeiro OTAs e comboios de alta velocidade, fazeres de grandes inaugurações, investimentos com retorno em capital político, tudo pompa e circunstância.

CASA DE RICARDO, DIA TRÊS

Restelo. Varanda norte do piso de cima da vivenda “Soares”. Inês Morais está recostada na cama de rede e ao desviar momentaneamente os olhos do último romance de Murakami sente o tremor.

- Está? Está? - Hum… desligaram.

Nem tempo de meter a coisa ao bolso, a vibração, de novo o mesmo toque - Está? Ah… És tu Matias. Foste tu que ligaste agora mesmo? - som ininteligível de voz masculina, grossa, do outro lado da linha - Porquê? Não interessa o porquê. Responde apenas: Foste ou não foste?

Matias conhecia-a bem, sabia precisamente qual seria a reacção e tudo o que fizesse naquele momento seria para provoca-la. Gostava de ficar imaginando o todo assanhado da cara tesa a tingir-se de vermelho rubro, veias salientes e os olhos pequenos a brilhar, o indicador direito espetado a cortar o espaço no desenho de gesticulações. Comprazia-se com isso.

- Bem. O silêncio também serve de resposta – retorquiu Inês. Não estava para joguinhos e por isso, quase sem fazer pausa, continuou – Sabes que dia é hoje não é? Oito da noite em ponto. Vão cá estar todos.

Desligou. Quase de imediato, chamou a interna, uma beirã baixinha de olhos castanhos e cabelo preto apanhado, vida de doze anos de serviço naquela casa.

- Está tudo pronto, Piedade? Olha… Diz ao meu filho que venha cá acima. Que quero falar com ele...

O filho veio. Estava a brincar com o Dalton. Aquele sujo nos calções? Ah… (cara envergonhada), não pudera evitar. Estás a ver o tamanho dele, sabes como ele é mãe… e aquelas patorras cheias de terra. Ainda tentei…

A reacção da mãe não deu azo para dúvidas. Era despir, tomar um banho rápido e estar lavado e pronto a tempo de receber as visitas.

Foi uma noite como tantas outras em que recebiam. Tudo estava preparado a contento. Vieram todos: Os Nogueira e a família Bastos. Os Pestana e os Monteiro. Matilde Lima, elegante como sempre. Falaram de negócios, da bolsa, de quão coitadinhos são os colunáveis do Jet-Set Português, do caso da greve (ingratos esses trabalhadores), da imigração, que deve ser controlada, que os gajos vêm para cá causar problemas, que os sustentem nos países de origem, nesses Brasis e Áfricas e países de leste. De tudo falaram entre garfadas de Bacalhau com Broa e Arroz de Pato. Bebendo (muito) tinto de várias estirpes: Quinta da Bacalhoa, Reguengos e Cartuxa. Depois, saíram um por um, educadamente para a sala de jogos. Ficaram até quase de manhã.

LUCIANA E SHEILA, DIA QUATRO

Hoje, ao ir buscá-las, Sheila apareceu sorriso ainda maior que o de Margarida. Era um daqueles sorrisos a esticar a pele, dos que ligam bem com par de olhos a brilhar e bochechas em covinha.

Hoje ao ir buscá-las, era quase meio o caminho percorrido quando notei a presença do objecto, do pequeno caderno de capa vermelha. Ao perguntar sobre ele, olhou-me e fechou-se em copas remetendo-se à resposta curta. “É segredo. Segredo de amigos”. E dito isso, voltou a sorrir.

CASA DE RICARDO, DIA QUATRO

Chega a casa sem que a mãe note o calção rasgado e os dedos sujos. Está contente, possuído de plenitude de segredo partilhado. Depois de tomar banho não voltará a sair e (estranhamente) não fará cara feia perante as muitas regras e imposições. Após a refeição, entra sozinho no quarto e recomeça a sonhar.

DESAPARECIMENTO

Como porteiro nunca me tinha passado um caso assim pelas mãos. Luciana, a senhora mulata baixinha chegou ao fim da tarde e fomos pela filha dela mas qual filha qual quê!.. Varremos o recinto de lés a lés, procurámos, perguntámos, vasculhámos salas e a miúda não estava em lugar nenhum.

Ela olhou-me e senti-lhe a aflição no rosto. Disse-lhe que não era nada, que se sentasse, que tivesse calma. Logo tudo se resolveria. Sem saber bem o que fazer, perguntei se queria um copo de água. Quero sim, por favor. E eu fui lá.

Vinha a chegar, copo na mão, quando vi a outra senhora. Mais alta (devia ter bem palmo e meio a mais que Luciana), loira, óculos escuros da moda, cabelo apanhado, ar elegante – uma executiva dessas todas cheias de tiques e modernices.

“O senhor é que é o responsável pela segurança?”

Disse que responsável, responsável não o era de todo uma vez que não me cabia a mim a feitura de políticas e regulamentos. Simples porteiro, meu trabalho limitava-se a vigiar entradas e saídas, pedir identificações e prestar esclarecimentos, certificar-me de que estava tudo nos conformes. Tentei convence-la, mas não me pareceu muito persuadida com a explicação.

“O senhor deve ser é um incompetente. Como é possível? Andamos nós a pagar para estarmos descansados. Confiamos em vocês e no fim de tudo acontece isto.”

Retorqui que era a primeira vez que acontecia algo do género. Que além do filho dela também desaparecera uma menina. Que a mãe dela era aquela senhora que estava sentada em frente e certamente estava nos mesmos ou maiores cuidados. E foi um erro ter feito aquela comparação.

“O senhor não deve estar a falar a sério… Quer-me comparar aquela ali? Já viu o aspecto? Aquilo é gentinha que sabe mais tê-los que cuida-los. Julgam que é só fazer e fazem. Depois que se dane…”

Escusado argumentar com gente assim, sabichões que já sabem tudo à partida. Poderia ter dito tanta coisa: que não era bem assim, que ela falava do que não conhecia, que o que estava fazendo era discriminação e esse era sempre o caminho mais fácil. Poderia ter dito mas não disse. Limitei-me a encara-la e retorquir

“A senhora sente-se e acalme. Vou pedir ajuda para ver se encontramos o seu filho”

CATÁLOGO DE INSECTOS

Descobriram-nos duas horas depois nuns terrenos à beira-rio. Ricardo estava de joelhos e apontava, dava indicação do que fazer. Quanto à menina, esta empunhava o bloco de notas e parecia desenhar.

Entregaram-nos às mães e foram-se na pressa. Deixaram comigo o bloco de notas pequeno de capa vermelho-escura e papel pautado. Cheio de desenhos e descrições maravilhosas.

Ao folheá-lo, sorri logo no contacto com o título:

Catálogo de insectos, ilustrações de Sheila Mendes e redacção de Ricardo Morais

Então, a leitura das garatujas e a observação dos desenhos infantis transportaram-me para um universo paralelo e utópico. Apercebi-me sem grande surpresa de como as crianças são ponto de encontro entre realidades diferentes em mundo globalizado onde é cada vez mais evidente sermos nós os insectos: Seres viventes, realidades actuantes devidamente estudadas e catalogadas. Tudo muito bem preparado para conferir facilmente o maior proveito a alguns (poucos).