As obras de Fabrício
Jorge Luiz da Silva Alves

    



     Obra correndo solta, um bate-e-quebra num casarão da Rua Dona A. Valéria colado de fundos com o hotel da Rua Coronel Carvalho, coração nervoso da histórica Angra dos Reis; brúneos pedreiros restaurando aquele casarão burguês olhavam o desfile dos hóspedes  nos corredores abertos do outro lado do hotel de três andares, idas e vindas para refeitório e cobertura, moças temperadas nos fogos da vida, embermudados senhores com jornais sob o braço e respeitáveis calvícies discutindo royaties e fusões, esbaforidas camareiras com engomados lençóis numa prestimosa manutenção de seus empregos em faina cuidadosa nos cômodos.

     Barulho lá e cá do baixo muro: na obra adjacente, os trabalhadores observavam, feitos boi e burro num encantado presépio, os palpitantes corredores dos andares; íntimos das sombras, monossilábicos, proferiam seus apartes naquele código adequado à plebe inculta, arrebanhada na periferia que grimpava as encostas angrenses, privilegiados belvederes(*) dos encantos naturais da baía dos ricos.
      Fabrício mourejava sem parar, embora também observasse e comentasse com seus iguais a lotérica felicidade da elite hotelar, seu foco destinava-se a uma pequenucha coisita de menos de metro e meio, redondos olhos azuis, serelepe feito ‘periga de novela das sete’, gestos jovialmente rocambolescos e nádegas salientes que engoliam a seda do shortinho; mas acompanhada por uma alta e morena balzaquiana de sérios olhos negros, censura e discrição no traduzir do policialesco observar, obviamente um perdigueiro atento às loucuras juvenis que sempre vinha do refeitório para os quartos em sonora manifestação de sabe-se-lá-o-quê em protesto. Desde a chegada de ambas na quinta-feira nublada, Fabrício catalogava aquelas distintas emoções da tenra petiza e da compenetrada adulta entre tantas que desfilavam naqueles corredores. Destas duas, salvara em seu disco íntimo alguns interessantes caracteres: sobre a literania anual de Paraty, uma vontade da jovem por espairecer e as metálicas imprecações da adulta – aproximadamente isso, durante as passagens pelo passadiço.
     E também os olhares: um desejoso azular por vida e um negrume intimidante, disciplinar, incisivo.
     No final da sexta-feira, Fabrício sentiu saudades dos conhecidos da rua oposta, a rua dum certo hotel. Visitou-os, após o quebra-quebra de ofício, e tomou dois dedos de conhaque por lá. E conseguiu, também, dois dedinhos de informações.  
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    Sábado de sol, manhã dourada em que a maioria dos hóspedes escapava para a prática do prazer, qualquer prazer: uns velejavam, outros trilhavam, alguns poucos curtiam o conforto da pousada, houve quem buscasse interação cultural. E outros, esperavam. Afogueados.
    Vencida a pouca altura do muro entre a mansão burguesa e o corredor hotelar, uma nova história iniciava-se, à socapa.
     Toque na porta, quase um arranhão, o encontro de almas: o bronze caiçara vindo tirar dos nove à prova, enquanto um coração saltava de tal forma no peito túrgido que parecia furar a blusinha...
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    Noite fria de um mágico sábado, o sábado em que descobrira Fabrício: aqueles cintilantes olhos azulados eram só felicidade pela vida e liberdade, descobertas com Fabrício, ah!, Fabrício que lhe carpira os receios e ignorâncias próprias da idade num sábado encantado, como jamais imaginara. Sempre desejara isto, implorava por tanto, o canalha! Precisava contar para a teimosa balzaca, enjoada, que lhe forçara tanto e, no fim, tinha mesmo razão em fazê-lo, agora sabia, seguramente sabia...
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     Um domingo de fechamento de contas.
     Abusada, esfaimada, realizada: contou-lhe a respeito de Fabrício, desde as Solas do Sol até o Canalha! , tão desenvolto e humano que lhe devorara as vísceras do saber. A maestria com a palavra escrita, a narrativa de seus textos, a singularidade da alma que apenas ele, Carpinejar, conhecia como poucos e traduzia em escritos adaptáveis ao deleite humano. Uma distante falta-do-que-fazer na biblioteca do colégio num passado recente e pôs-se a ler Fabrício Carpinejar(**), tomada de uma estranha e secreta fome, não parou mais. Queria, de fato, outras emoções ali, na paradisíaca Angra; mas ouviu o apelo da balzaca e foi à Feira Internacional de Paraty, no dia em que Fabrício apresentava-se na Tenda dos Autores, um programa-solo, já que a acompanhante entrevara-se no leito, em fortes dores de cabeça. Pena: agora, despejava-lhe a descoberta do saber, do ídolo, da cultura.
     Graças ao bom Deus dos pedreiros, as dores de Leda (a balzaca de negros olhos) passaram, pois ela também fora salva por Fabrício. Fabrício Zeus de Souza,  pedreiro-de-ocasião, a seu modo um observador arguto da alma humana, sobretudo em corredores hotelares onde,  ocasionalmente, transmutava-se em Cisne para eternizar paixões nos mais metálicos e conservadores corações.  


(**) Fabrício Carpinejar, poeta gaúcho, Prêmio Jabuti de Literatura em Poesia em 2009, Mestre em Literatura Brasileira e filho do poeta gaúcho Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras; Fabrício é o autor de "As Solas do Sol", "Canalha!" e do famoso "Caixa de Sapatos".

(*) mirantes

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Jorge Luiz da Silva Alves
Enviado por Jorge Luiz da Silva Alves em 09/07/2012
Reeditado em 09/07/2012
Código do texto: T3769153
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