imagem: google

 

 
OLHO DA MANHÃ
- Bonanza Bomtempo -
 
 
     Bonanza Bomtempo concordara, mas ainda não entendia realmente porque tinham que se embrenharem em território inimigo em busca de um homem que tinha informações sobre o destino de um dos agentes do MI6. Segundo lhe dissera Cooper, esse agente havia sido atraído em uma armadilha e estava nas mãos da SS em solo alemão. Gostava de agir só, sem interferências, tomando as decisões momentâneas, que a situação exigia; mas ali estava sob ordens e as cumpria, mesmo sem compreendê-las. Não gostava disso.
     Naquela manhã, Bonanza Bomtempo e seu acompanhante passam pelo posto de controle apresentando seus  novos documentos na Gare de l’Est, em Paris, e embarcaram pra Strasbourg, Alemanha, para dali seguirem com destino a Vienne. Essa era, antigamente, parte da rota inicial do Express d’Orient, um serviço de transporte de passageiros que inicialmente ia de Paris a Istambul, na Turquia. Chegou a ser interrompido entre os anos de 1914 a 1918, devido à Grande Guerra, retomando seus serviços logo em seguida, tendo estendido a rota anexando vagões para passageiros vindos de Londres, com um trajeto alternativo, com saída da estação Gare de Lion, ao sul de Paris. Mas naqueles dias turbulentos, durante a nova guerra, os serviços haviam sido interrompidos novamente, sendo o transporte administrado por uma companhia alemã, Mitropa, mas na realidade estava sob o controle das autoridades alemãs, e servia mais aos propósitos de guerra, às forças militares de Hitler.
     Helene e Karl Weber observam Paris ficando pra trás. Em seguida arrumam sua bagagem. Havia um longo trecho a ser percorrido. Ao abrir sua valise, Karl quase deixa cair uma pasta de arquivo, com capa preta. Helene nada percebe. De costas pra ela, Karl aproveita e dá uma rápida folheada, observando a lista de nomes e anotações a respeito deles.
     - O que é que está lendo? – Pergunta Helene.
     - Ah... Não é nada. Apenas dei uma olhada nesse dossiê, sobre essa agente dupla.
     Karl retira da valise uma pasta de capa preta, erguendo acima do ombro. Helena a reconhece.
     - Já havia me esquecido dela.
     - Francamente não sei o que pode te interessar daqui – diz Karl.
     - Já havia ouvido falar dela. Achei interessante na hora. Simples curiosidade. Acho que vou aproveitar o tempo que temos até Estrasburgo.
     Karl arruma a valise e a fecha. Vira-se e entrega a pasta a Helene.
     - Boa diversão. Eu vou aproveitar pra dormir um pouco. Tivemos uma noite agitada. Aconselharia você a fazer o mesmo, mas acho que não vai adiantar, não é?
     Como resposta, Helene apenas lhe sorri.
     Ela abre o documento e na primeira página lê:

Margaretha Gertuida Zelle, nascida em Leeuwarden, Holanda, em 07 de agosto de 1876, filha de comerciante de descendência Javanesa e mãe holandesa (...) sempre rejeitou sua origem européia, sempre dizendo ser filha de um rajá e mãe indianos. (...) Perdeu a mãe aos quinze anos, indo morar com tios sendo enviada para estudar em Leyden (...)  Casou-se aos dezoito anos, em Java, com o capaitão Rudolph McLeod, de 39 anos (...) já com um filho mudara-se para a Indonésia. Em Toempoeng, próximo a Bali, nasce a filha (...)  Em Medan morre o filho, envenenado por uma babá, amante de seu marido (...) Voltam para a Holanda em 1902, separando-se de seu marido pouco tempo depois.(...) Ela parte pra Paris, trabalhando como modelo, posando nua para artistas.(...) Volta para Holanda em 1904 e torna-se amante do barão Henri de Marguerie. (...) Em 1904 retorna a Paris, com custas financiadas pelo seu amante (...)Hospedou-se no Grand Hotel...

     Helene não queria admitir, mas estava cansada. Sente as pálpebras pesarem. Olha para Karl, à sua frente, dormindo. Helene se pergunta que surpresas mais ainda guardava seu companheiro. Ainda não sabia como ele havia conseguido as chaves para os arquivos do escritório da Gestapo, em Paris, facilitando sua ação, de onde inclusive tirara o dossiê que agora lia. Sem contar algumas informações, detalhadas, sobre os alemães, que nem ela, já bastante tempo, infiltrada, conhecia. Alguma coisa a incomodava em Karl, não sabia exatamente o quê. Helene olha pela janela, a paisagem em movimento, vez ou outra uma casa ao longe, provavelmente desabitada. Pensa como é interessante os fatos, lia sobre uma agente dupla; sua missão era identificar agentes duplos; estavam em busca de alguém que podia identificar outros agentes.
     Exceto pela traição, sendo agente duplo, quanto mais lia sobre aquela espiã a serviço dos alemães, mais se sentia fascinada pela sua história, e, pelo modo como agia, via semelhança entre Mata Hari  e Bonanza Bomtempo.
     Helene Continua sua leitura.

Em 1914, com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, o Império Áutro-Húngaro invade a Sérvia, iniciando um conflito generalizado. Em 6 de agosto daquele mesmo ano, Mata Hari embarca pra Suíça, sendo retida na fronteira pelas autoridades... (...)
Mata Hari tornara-se inconveniente aos alemães (...) Como ela já havia retornado a Paris, o comando alemão ordenou o envio de mensagem cifrada, sabendo que o inimigo possuía a chave para decifrar o código, falando de um agente alemão, nomeado de H21.(...)  Mata Hari é presa em Paris, sendo condenada à morte. Permaneceu na prisão por alguns meses.
Segundo informações de nossos agentes, aos 41 anos, em 15 de outubro de 1917, em Vincennes, França, Mata Hari vestiu-se com elegância para  enfrentar o pelotão de fuzilamento, composto por 12 soldados franceses, comandados pelo Marechal Petey. (...)

     Helene sente novamente as pálpebras pesarem. Esforça-se em continuar a leitura. Ouve passos do lado de fora de sua cabine. O som de passadas curas e suaves aproxima-se, detém-se por um instante diante da porta de sua cabine. Instantes depois continua. Intrigada, Helene aproxima-se da porta da cabine, entreabrindo-a. Não viu ninguém. Coloca o dossiê sobre a valise de Karl e retorna à porta. Ela sai e olha pros lados. Ao final do corredor consegue ver o vulto de uma mulher entrando na última cabine. Não conseguindo conter sua curiosidade, ela se movimenta em direção àquela cabine. Ao aproximar-se percebe que a porta está entreaberta. Lá de dentro ouve uma voz macia:
     - Entre! Esperava por você.
     Helene olha pros lados do corredor. Não vê mais ninguém, nem ouve outras vozes. Pareciam viajarem sozinhas naquele trem. Ela empurra a porta, vendo uma senhora sentada. Trajava um corselete de renda sob o casaco, saia longa e botas, calçava luvas até os cotovelos, cabelos trançados, caídos às suas costas. Estava sentada, com o corpo ereto, segurando nas mãos um chapéu de feltro. Com um sorriso suave, acompanhando seus olhos negros, ajudando compor o rosto, aquela senhora acena para que se sente à sua frente. Sem dizer uma palavra, Helene entra e se senta. Ela reconhecia aquela senhora, mas estava um pouco confusa. Por alguns instantes as duas se olham. A senhora rompe o silêncio:
     - Aqui estou. Creio que queira fazer algumas perguntas a meu respeito.
     - Bem... Custa-me crer que seja você mesma. Você foi executada a mais de vinte anos. Pelo menos é o que todos sabem.
     - E que você leu naquele documento.
     - Como sabe que tenho um dossiê a seu respeito?
     - Tem certeza que tudo se passou daquela forma? Tem certeza que não foi encenação pra que eu pudesse sair de cena sem causar danos maiores?
     - E porque fariam isso?
     - Tinha amigos, tanto franceses como alemães. Amigos influentes. Havia dormido com todos eles. Sabia de muitas coisas. Tinha... e tenho, tudo documentado, pra garantir minha segurança. Fez-se necessário que eu desaparecesse. O final da guerra estava próximo, de comum acordo foi armado todo aquele circo.
     - Mas eu li sobre sua execução, e soube por outros, de outras versões...
     - Tudo parte da armação, pra confundir. Houve realmente uma encenação. Mas como vê, estou aqui.
     - Mas você se tornou conhecida. Onde esteve esse tempo todo?
     - Essa é a parte não prevista. O fato repercutiu mais que o desejado. Logo em seguida à “execução”, parti em um navio para um país da América do Sul. Um povo hospitaleiro, de bem com a vida. Não fazem perguntas.
     - E o que faz aqui, em plena guerra?
     - Fora da Europa também há guerra. Há forças de ambos os lados querendo invadir aquela terra. Ela fica numa posição estratégica. E eu não quero que o conflito estrague aquele paraíso.
     - Afinal: Você é mais fiel à França ou à Alemanha?
     Nesse momento ouve-se o apito do trem. A senhora olha pela janela e diz:
     - Estamos chegando a Estrasburgo. Melhor você retornar à sua cabine. Nos falamos novamente mais tarde. Eu a acompanharei até sua cabine.
     As duas saem sem nada dizerem. A senhora apenas lhe acena se despedindo, quando Helene entra em sua cabine. Ela senta-se e com o olho fixo pela janela, as pálpebras pesando, tudo vai escurecendo.
     Novamente o apito do trem. Helene acorda e vê Karl sentado à sua frente, lhe observando.
     - O que foi? – pergunta ela.
     - Nada. Apenas admirando uma bela mulher.
     - Hum...  O que aconteceu? Cadê ela?
     - Ela quem? Teve maus sonhos novamente?
     - Sim. Acho que não dormi direito. E o dossiê que estava em minhas mãos.
     - Está sobre a valise. Você deve ter posto lá antes de dormir.
     Helene corre o olho pela cabine, olha através da janela. Levanta-se e vai até o corredor. Vê algumas pessoas transitando por ele.
     - Helena! Volte. É melhor não nos mostrarmos muito.
     Ela volta e senta-se. Tenta por as ideias em ordem. Dali a pouco precisaria estar atenta a tudo, quando novamente passariam por um posto de fiscalização.
 
 




imagem: google
Execução de Mata Hari

 





Walter Peixoto
Julho/2012
 



OUTROS ARQUIVOS BONANZA BOMTEMPO

RETORNO A PARIS 
http://www.recantodasletras.com.br/contos/3747822 

 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 30/07/2012
Reeditado em 30/07/2012
Código do texto: T3804249
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.